Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

From Pernambuco to Stardust

Um ofício burocrático dirigido a qualquer corpo de qualquer galáxia, a
qualquer, pois os burocratas sempre acreditam que a sua realidade é universal,
em resumo, um ofício burocrático assim começaria:


Via Láctea, Terra, Brasil, Pernambuco, 17 de setembro de 2006


De: Telespectador curioso


Para: A quem interessar possa


Assunto: “Poeira das estrelas”, no Fantástico, Rede Globo de Televisão


E depois do protocolar Prezados Senhores, entraria de imediato no, digamos,
mérito da correspondência:


1. Seria estúpido de nossa parte, e de uma
estupidez além da conta que julgamos merecer, pregar a incompatibilidade entre
televisão e divulgação científica. Isto porque, para tal afirmar, seria
necessário possuir o melhor processo de ser estúpido, a saber, o olvido de tudo
e de todos que foram antes. Mais precisamente, seria necessário mergulhar no
limbo a bela série “Cosmos” de Carl Sagan, que, ousamos dizer, deveria há muito
ser distribuída nas escolas públicas de todo o mundo.


2. Seria estúpido, igualmente, esperar que
o programa Fantástico realizasse a maravilha de informação científica,
narração inteligente e qualificação de autoria como o realizado na série de Carl
Sagan. Não. O programa Fantástico bem conhecemos, ele é o programa
inenarrável da inermidade de nossas noites de domingo. “Cosmos”, portanto, nem
sonhar. No Fantástico sempre vamos em órbita, pero em outra.


3. Mas se no programa cabem reportagens bem
conduzidas por, ressaltemos, Caco Barcellos, não seria muito delírio a esperança
de ter um programa científico de qualidade, que dizemos, um programa científico,
burrice nossa, perdão, uma seção de programa que respeitasse a inteligência,
ora, desculpem, que respeitasse o mínimo de informação em uma série dominical de
10 minutos. Bueno, bueno, bueno, aqui foi Tróia, diria Dom Quixote. Sentimos que
já nos denunciamos como loucos nestes prolegômenos. Bloco científico de 10
minutos em meio ao programa Fantástico, sempre aos domingos? Vê-se logo
que há uma oposição, queremos dizer, há um antagonismo, mais precisamente, uma
guerra encarniçada e figadal entre um tempo exíguo de exposição em um programa
de lazer, suave debilidade mental – aquele alto sentido intelectual da ressaca
de álcool dos domingos – e a ciência, qualquer ciência, qualquer. Para usar uma
linguagem mais acadêmica, diríamos que são gêneros antípodas.


4. Diremos então que se não nos cabe esperar, pelo
menos cabe mostrar, ou, quem sabe, demonstrar, onde a roupa do Norte não coube
neste acalorado tempo do Sul. É Fantástico, bem o sabemos, mas não
podemos deixar de ver o que promete a série “Promessa das estrelas”, perdão,
“Poeira das estrelas”, e o que ela realiza, pelo menos até o bloco “Assim na
Terra como no céu”.


5. A primeira coisa a notar é que o título geral e
os títulos particulares são ótimos. Diríamos mesmo, se não corrêssemos o risco
de cair no pecado da má interpretação, a série de programas descobriu um bom
título, “Poeira das estrelas”, falta descobrir um programa. Pois. As chamadas
também são ótimas, queremos dizer, o sentido jornalístico de anunciar o que não
se tem para a venda é ótimo. Mirem que titulares extraordinários, que excelentes
publicitários o mundo está a perder, quando não valoriza o gênio que assim
anuncia o programa: “De onde viemos? Como foi que o mundo começou? O físico e
astrônomo Marcelo Gleiser apresenta as respostas da ciência para essa e muitas
outras perguntas fundamentais”. Diante disso, que pobreza é “Cosmos”, pois não?
Que simplicidade, que auto-satisfação modesta, indigente, é esta coisa pequena,
mais parecida com marca sem imaginação de cosméticos, duas sílabas só, Cos-mos,
não é mesmo? Pois. Que homem não desejará saber de onde veio, muito além ou
aquém do útero materno? E como o mundo começou, essa questão idiota, tonta,
resolvida desde o Big-Bang, que tudo explica, sorri e qualifica, quem mesmo não
desejará saber, não é mesmo? Em menos de 10 minutos por resposta, imaginem.
Pois.


6. Mirem.




“Foi quando entrou em cena o jovem astrônomo alemão Johannes Kepler. Ele era
uma espécie de Woody Allen da ciência: corpo franzino, tímido e neurótico,
Kepler fugia de uma história de vida tumultuada. A mãe dele havia sido acusada
de bruxaria e o pai era um mercenário de reputação duvidosa, que havia
abandonado a família… Nos anos seguintes, início do século 17, Kepler honra o
pedido feito por Brahe em seu leito de morte. Ele usa os dados astronômicos do
príncipe com brilhantismo e finalmente desvenda o mistério das órbitas dos
planetas em torno do Sol”.


Olvidemos, se é possível olvidar, uma atualização da pessoa física de Kepler
em Woody Allen – uma inadequação de gênero, pessoa e grau – e passemos ao trecho
em que esse herói de Marx “usa os dados astronômicos do príncipe com
brilhantismo e finalmente desvenda o mistério das órbitas dos planetas em torno
do Sol”. Simples, não? Rápido, pois não, bastou a Kepler brilhantismo no uso dos
mapas de Tycho Brahe e “finalmente” desvendar o mistério das órbitas. Que poder
de síntese, que transformação dos longos e longuíssimos anos de trabalho de um
homem em uma curta frase. O problema é que os telespectadores de todo o Brasil
perdem nesse trecho toda uma história heróica de fazer, refazer, destruir,
reconstruir, morrer, renascer, suar, matar-se, sofrer e ter uma paciência
infinita desse cara que se parecia com Woody Allen. Um homem que era ao mesmo
tempo escravo, operário e senhor de tornar humanas as esferas que rolam em torno
do sol.


7. Marcelo Gleiser, acreditamos, disso não tem
culpa. Ainda que “conduza”, pelo que parece conduzir, não tem culpa de uma
brevidade e orientação editorial que julga quanto mais simples, mais estúpido,
melhor. Ciência é mesmo algo indigesto, quando ciência mesmo, sabe-se, pensam os
orientadores da televisão. Para um programa das noites de domingo, na véspera de
uma segunda-feira, continuam a pensar, pensar, na falta de verbo mais próprio, o
ideal seria transformar uma aula científica em um videoclipe, mas os chatos, os
aborrecidos e aborrecedores de sempre iriam protestar contra o “o assassinato da
ciência”, os idiotas, que não vêem o bem que fazemos à cultura e à educação
quando trazemos um assunto espinhoso, difícil, para um programa de
entretenimento … Nada de mais fazer da Ciência algo menos grandioso, ciência,
mais palatável, dizem e dizem-se. Por isso dizemos nós, ainda que não estejamos
autorizados, mas coisa boa é fazer aquilo para o qual não temos autorização, e
por isso imaginamos o seguinte diálogo entre Marcelo Gleiser e a produção do
programa:


– Eu medi os céus, agora medirei as sombras da Terra. Embora a minha alma
rume ao céu, a sombra do meu corpo permanece aqui.’ Assim escreveu Kepler,
Marcelo Gleiser fala.


– Isto não se diz em televisão, Marcelo. Pega mal. Lembre-se. Você está no ar
para milhões de pessoas. Lembre-se: elas têm um vocabulário pobre. Lembre-se,
sempre: há milhões de analfabetos na noite de domingo.


– Mas é muito difícil fazer ciência para analfabetos.


– Sim, difícil, mas não impossível. Você não é um gênio?


– Eu vou tentar, responde Marcelo.


8. E por isso, mirem em que ficou o programa
dedicado a Isaac Newton em 10.9.2006:




“Você é capaz de já ter ouvido falar na história de que uma maçã caiu na
cabeça de Newton enquanto ele tirava um cochilo debaixo de uma árvore. Se a
história é verdadeira, não importa. O fato é que Newton concluiu que, se a maçã
cai no chão, é porque existe algo que a puxa para baixo: uma força.


Na Grécia Antiga, quase 2 mil anos antes de Newton, o filósofo Aristóteles
dizia que pesos diferentes caem com velocidades diferentes. Segundo esse
raciocínio errado, uma maçã pequena cairia mais devagar que uma maçã grande…”.


Devagar, mesmo que para um trecho de 1 minuto, menos pressa. Se a história é
verdadeira ou não, primeiro, importa, muito importa, porque dessa história se
faz uma gênese arbitrária, falsa, do processo terreno, histórico, do
conhecimento. As pessoas – até mesmo os cientistas de gênio, até mesmo aquele
especial que um dia se chamou Isaac Newton – não andam por aí a descobrir e a
fazer revoluções importantes na ciência ao acaso, ao azar, à sorte, por obra e
graça da sua estupenda genialidade, que teria descoberto o que nenhum outro
homem descobrira e jamais poderia descobrir. Menos, bem menos, por favor. Gênios
assim, miraculosos, nem mesmo em As mil e uma noites.


Em segundo lugar, se a história é falsa, e por mil e um motivos ela não passa
de uma ilustração para criancinhas de colo, não se poderia escrever “Newton
concluiu que, se a maçã cai no chão, é porque existe algo que a puxa para baixo:
uma força.”. A isto deveria ser respondido que a gravidade é mais eloqüente para
as maçãs maduras, e, na sua universalização, para todos os frutos maduros. A um
bater de vento, a uma agitação de um pássaro, eles, frutos, maçãs e teorias de
mistificação caem, sempre. Cair, vir com infausta solidez ao solo também
acontece aos indivíduos embriagados, que prenhes de álcool e percepção curta,
calculam mal a distância de um obstáculo. Caem, com todo o peso, para maior
glória da Lei de Gravitação Universal. E nem por isto Newton poderia concluir,
desse ato desastrado de um ébrio, qualquer nova revelação. Física, pelo menos,
jamais. Mas não violentemos a citação, mais do que é uma violência o simples ato
de citar, porque assim continuou o programa.




“ …. a força que faz a maçã atingir a cabeça de Newton é a mesma que faz
com que o elefante e a formiguinha caiam ao mesmo tempo da Torre de Pisa. Uma
força que age de maneira igual sobre todos os objetos.


Antes de Newton, ninguém havia conseguido explicar exatamente esse fenômeno
da física. Nem mesmo Galileu. Essa força, que age sobre tudo e sobre todos,
disse Newton, era a gravidade. Sem ela, todos nós escaparíamos flutuando, espaço
afora.


Mas não bastava explicar. Em ciência, é preciso provar. Para provar que a
gravidade existia, Newton inventou, sozinho, toda uma nova matemática, o cálculo
diferencial e integral. Tudo isso com apenas 24 anos de idade.


Essa matemática até hoje é usada para o estudo da física. Newton acreditava
que a linguagem da natureza é a matemática. Só com ela podemos descrever, testar
e comprovar os fenômenos. Mas Newton não parou por aí.


Numa sacada genial, Newton juntou a física de Kepler com a física da Galileu.
Ele mostrou que a mesma força que faz uma maçã cair no chão faz a lua girar em
torno da Terra e os planetas girarem em torno do Sol”.


Protestos de estima


Se nos permitem o atrevimento, diríamos que no trecho acima existem todas as
impropriedades que podem nascer em um só programa científico de 10 minutos. No
primeiro parágrafo ele continua com a lenda, o acidente da maçã que gerou a
descoberta da Lei de Gravitação Universal. No segundo, há uma implícita
exigência de que homens de épocas distintas cheguem à mesma conclusão, e se não
o fazem, isto se deve ao nível e à qualidade do gênio de cada um. No terceiro,
faz-se uma injustiça aos matemáticos do tempo de Newton, e mais particularmente
ao trabalho imenso de Leibnitz, cujo pioneirismo na descoberta do Cálculo
Integral até hoje alimenta polêmicas. No último, volta a maçã, e de passagem
mencionam-se Kepler e Galileu.


Ora, é voz corrente – e mais que corrente, fundamentada em cálculos e na
história – que a Lei de Gravitação é filha natural da Terceira Lei de Kepler. O
próprio Newton deixou registrado isto, no prefácio do catálogo dos Portsmouth
Papers
, quando descreveu como utilizara as Leis de Kepler para derivar a
gravitação universal.


Como se vê, todos erros, ou ligeiros equívocos, que poderiam ser evitados se
a história do pensamento científico pudesse caber nos guias e edições da ciência
aos domingos. Mas aí, se coubesse, já não teríamos Poeira das Estrelas, nem
Woody Allen como uma reencarnação de Kepler, e perderíamos a fundamental
informação de que “Ticho Brahe era um homem de personalidade difícil e aparência
assustadora. Em um duelo, havia perdido parte do nariz e usava uma prótese de
metal”. Já não seria Fantástico, o show da vida nos domingos.


Sem esperar o atendimento do nosso pleito aqui encerramos. Só nos resta
renovar os nossos mais caros protestos.
Atenciosamente.

******

Jornalista e escritor