Tuesday, 12 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Gabriela Wolthers

‘Quando Lula e seus conselheiros palacianos decidiram, com uma canetada só, fechar todas as casas de bingo do Brasil, começou-se a vislumbrar uma característica que se cristaliza agora com a tentativa de expulsar o jornalista americano Larry Rohter do país -a falta de serenidade do governo.

Nos dois casos, o presidente e seu núcleo mais próximo demonstraram que são capazes de tirar qualquer coelho da cartola quando estão sob pressão. Seja porque estão acuados por denúncias -como no caso Waldomiro Diniz, que detonou o fechamento sem planejamento nenhum dos bingos- , seja porque se sentem injustiçados -caso da reportagem do ‘New York Times’.

O detalhe é que o país não é uma arena de circo onde as pessoas aplaudem passes de mágica. Ainda mais quando feitos de improviso. Não cabe a um governo decidir com o fígado ou com o coração. O mínimo que se espera é que ele pondere com o cérebro as conseqüências de suas atitudes. Até para evitar o desgaste duplo de tomá-las e ainda vê-las revogadas sem muita força, como ocorreu tanto num episódio como no outro.

Ao deixar as pessoas boquiabertas com suas medidas, o governo federal começa a passar a imagem de inconseqüência. Não dá para voltarmos ao tempo em que o Brasil permanecia sob tensão a espera da próxima atitude inusitada do Palácio do Planalto. Do jeito que o mundo anda, com incertezas políticas e econômicas por todos os lados, tudo de que não precisamos é contribuir para aumentar ainda mais o clima de desconfiança. Que pelo menos as nossas turbulências sejam causadas por motivos mais nobres do que Waldomiros ou Larries da vida.’



Roberto Romano

‘Truculências governamentais’, copyright Folha de S. Paulo, 14/05/04

‘Em setembro de 2002, a Folha realizou uma série de sabatinas com os candidatos presidenciais. Luiz Inácio Lula da Silva mostrou-se afável, na linha determinada pelo marketing.

Entre as perguntas a ele dirigidas, uma tratava dos nexos entre a possível administração do PT e a mídia: ‘Governos eleitos na América do Sul enfrentam pesadas críticas da imprensa, às quais tentam responder com atitudes respectivas. Isso ocasiona choques que chegam a ameaçar a estabilidade institucional, como no caso da Venezuela. Qual será a sua política para a mídia internacional e brasileira? Como pretende vossa senhoria se relacionar com os formadores de opinião?’.

Resposta tranqüilizadora. Lula revela uma conversa com Hugo Chávez e os bons conselhos que deu ao venezuelano: ‘Não cabe ao presidente da República dizer que não conversa; ele é presidente de todos. Então você precisa conversar com todo mundo (…) É preciso criar um canal de conversação com a sociedade e restabelecer a tranqüilidade para executar a política social sonhada’.

O candidato indica as razões dos ódios contra Chávez: a reforma agrária, a pesca predatória proibida na Venezuela e outros itens da pauta política daquele país. Nada justificaria, segundo o petista, as atitudes de Chávez contra a imprensa. ‘Chávez, não tem jeito, ou você estabelece uma negociação com a sociedade, com os empresários, mesmo com aqueles que são mais duros contra você, com os donos dos canais de televisão, com os donos dos jornais, para que se estabeleça a possibilidade de governar esse país. Ninguém vai conseguir viver nessa tensão a vida inteira’.

Prudentes conselhos. Mas a pergunta é sobre Lula. Resposta: ‘A minha vida inteira só fiz (…) acordos, negociações (…) Não temos nenhum problema de ter algo para assimilar aquilo lá. Até porque, se o cara não quiser conversar comigo, eu vou em cima dele para conversar’. E Clóvis Rossi logo comenta: ‘Ainda bem que é para conversar’.

A mansidão da fala não serve ao líder petista. Em almoço na mesma Folha, surge a garra sob a luva de pelica. Interrogado sobre seus atos no passado recente, ele abandona a sala. Não se trata apenas de bons modos -um ‘presidente de todos’ responderia com firmeza, expondo sua posição. Mas, no PT, Lula aprendeu a ser inquestionável. A chusma de bajuladores, liderada por intelectuais, fornece o tom da corte. O ‘Lulinha paz e amor’ é só eleitoral.

Quando o novo presidente ainda se dirigia às massas e não se alojava atrás de vidros embaçados, entrando pelas portas da frente nos edifícios públicos, o nosso embaixador em Cuba deu o tom do verdadeiro poder. Cuba fuzilara pessoas porque fugiam do país. Até aí, as divergências éticas previsíveis no debate governamental e na sociedade. Mas Tilden Santiago rosnou: ‘Então, se também vierem querer desestabilizar o Lula, nós também teremos que tomar medidas aqui’.

As unhas danificam a luva de pelica. Sumiram as entrevistas coletivas à imprensa, choveram medidas repressivas. Dos ‘radicais’ expulsos aos velhinhos nas filas do INSS para ‘provarem’ a sua existência, violências foram cometidas com arrogância inédita. A reforma agrária patina, no Fome Zero tudo está por fazer. As finanças vão bem, os empresários, os trabalhadores, os docentes universitários e a ‘sociedade’ suportam o pior. A segurança pública desaparece, bandidos ensaiam sua soberania nas barbas dos governos legais. E o diálogo amplo, geral, irrestrito?

Um jornalista estrangeiro escreve coisas sobre a vida pessoal do presidente. Em vez de o processar nos tribunais, o governo segue a doutrina Tilden Santiago: expulsão do território. Apesar da truculência de Bush e seus pares, nos EUA ainda resiste a liberdade de imprensa. Se aquele país fosse governado pelos que no Brasil ordenaram a expulsão do correspondente, ninguém saberia das torturas feitas no Iraque.

Enganam-se os que, no episódio, insinuam ameaças à soberania nacional. A soberania prejudicada com a violência do Planalto é a que pertence ao povo brasileiro. Os que se julgam donos do Brasil devem aprender que o poder não lhes foi concedido para intimidações ou vinganças. E, na imprensa, quem cala e apóia a expulsão de um colega deve ficar de sobreaviso. Amanhã, se redações forem invadidas e novos profissionais presos, é preciso saber que a cumplicidade de agora é vital para os ditadores em potência.

Com a expulsão, as luvas de pelica rasgaram-se totalmente. Sobraram apenas as garras dirigidas contra todos os que não se inclinarem diante do poderoso que ‘vai para cima’ dos governados. E não para conversar, mas como senhor da razão. Roberto Romano, 58, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp e autor de, entre outras obras, ‘Moral e Ciência – a Monstruosidade no Século XVIII’ (ed. Senac/São Paulo).’



Silvana de Freitas

‘Justiça garante a repórter do ‘NYT’ direito de ficar no país’, copyright Folha de S. Paulo, 14/05/04

‘O ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) Peçanha Martins concedeu ao jornalista americano Larry Rohter um salvo-conduto, documento que lhe garante liberdade de locomoção. Segundo o próprio ministro, essa decisão o autoriza a permanecer no Brasil e continuar trabalhando como correspondente do jornal ‘The New York Times’.

O governo tem outro entendimento. Em entrevista ontem à noite no Palácio do Planalto, o ministro interino da Justiça, Luiz Paulo Barreto, afirmou que a decisão do STJ é uma mera medida cautelar que não suspende a eficácia da decisão do Ministério da Justiça no que diz respeito ao cancelamento do visto do repórter.

A decisão do ministro do STJ é provisória, assim como uma liminar. Segundo Peçanha Martins, que é relator de habeas corpus movido pelo senador Sérgio Cabral (PMDB-RJ) em favor do repórter, sua decisão deverá vigorar até o julgamento do mérito pela 2ª turma do STJ, composta por cinco ministros, sem data prevista.

O senador Sérgio Cabral pediu a concessão de liminar que suspendesse o ato do ministro interino da Justiça que, na terça-feira, cancelou o visto de Rohter, mas, na decisão de ontem, Peçanha concedeu um salvo-conduto para assegurar a liberdade do repórter.

Essa diferença entre a liminar e o salvo-conduto é que gerou interpretações distintas entre o ministro do STJ e o governo sobre o alcance da decisão judicial.

Interpretação oficial

O ministro interino da Justiça afirmou que a decisão do STJ apenas garante ao jornalista americano o direito de entrar no Brasil e de se locomover livremente no país, o que, aliás, não estava proibido. Segundo ele, ao entrar no Brasil -se não houver nenhuma decisão judicial diferente nesse meio tempo-, Rohter será notificado normalmente do cancelamento do visto, dia em que começa a contar o prazo de oito dias para deixar o país.

Já Peçanha disse que Rohter ‘pode sair do país, entrar, ficar, transitar e escrever’, porque o salvo-conduto teria ampla abrangência. Por essa interpretação, o governo estaria impedido de obrigar o jornalista a sair do país.

Advogados ouvidos pela Folha afirmaram, reservadamente, que o salvo-conduto normalmente é utilizado para impedir a prisão, não a coação. Por isso, o senador Sérgio Cabral poderia pedir ao relator do habeas corpus uma nova decisão, na qual a concessão da liminar ficaria expressa.

Em sua decisão, Peçanha Martins fez referência à pessoa do presidente da República, sem citar o nome de Luiz Inácio Lula da Silva. ‘O Brasil é um Estado democrático de Direito, e o presidente da República contribuiu com intensa participação política para a instauração da democracia plena no país e se conduz com honra e dignidade’, afirmou.

O visto foi cancelado dois dias depois de o ‘NYT’ ter publicado reportagem de Rohter sobre o suposto abuso de Lula no consumo de bebidas alcoólicas. O cancelamento teve como objetivo obrigar o jornalista a sair do país.

A base legal do ato é o Estatuto do Estrangeiro, uma lei de 1980, particularmente o artigo 26, que autoriza a adoção dessa medida na hipótese de ‘inconveniência de sua presença [do estrangeiro] no território nacional, a critério do Ministério da Justiça’.

Ameaça

Para o ministro do STJ, a proibição de permanência do repórter no Brasil implicava ameaça à liberdade de expressão, um dos direitos fundamentais do cidadãos assegurados pela Constituição.

‘No Estado democrático de Direito, não se pode submeter a liberdade às razões de conveniência e oportunidade da administração. Aos estrangeiros, como aos brasileiros, a Constituição assegura direitos e garantias fundamentais descritos no artigo 5º e seus incisos, dentre eles avultando a liberdade de expressão.’

A AGU (Advocacia Geral da União) anunciou que não entrará com o recurso no qual pediria a revisão da decisão.

Antes do julgamento do mérito, Peçanha Martins analisará informações que requisitou ontem do Ministério da Justiça e o parecer do Ministério Público Federal. Ele pediu explicações do Ministério da Justiça e deu 72 horas de prazo para a resposta. O pedido de habeas corpus, apresentado um dia após o cancelamento do visto, contém apenas matérias de jornais brasileiros sobre o ato.’



Valdo Cruz

‘Manual trocado’, copyright Folha de S. Paulo, 16/05/04

‘Todo governo que se preze deveria ter à mão um bom manual de gerenciamento de crises. Fernando Henrique Cardoso, durante seus dois mandatos, deu mostras de que leu, releu, decorou e colocou em prática um de excelente qualidade.

Tudo indica, porém, que levou consigo seu manual preferido quando esvaziou suas gavetas no Palácio do Planalto. Ou deixou-o escondido em alguma estante, empoeirado, longe do alcance dos olhos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Afinal, desde o início deste ano, o que se vê dentro do Planalto é uma usina de confusões. Se há um manual sendo lido por Lula, com certeza ele deve prescrever dicas de como gerar e incendiar uma crise.

O pior é que 2004 tinha tudo para ser um excelente ano. Inflação controlada, contas externas no azul, superávit da balança comercial em alta. Mas, desde janeiro, o governo patina, patina e patina.

Ficou quase paralisado em janeiro por causa da reforma ministerial. Em fevereiro, experimentou uma fase de letargia com o escândalo Waldomiro Diniz. Depois, a base aliada quase se partiu e a oposição derrotou o governo petista no Senado.

Agora, Lula transforma um caso menor numa baita de uma crise, arranhando profundamente sua imagem. Quem acha que ‘tudo bem, o Lula é assim mesmo’, deveria conversar melhor com a turma da economia.

Na quinta-feira, auge do caos gerado pela reportagem do ‘New York Times’, investidores ligavam preocupados, temerosos com o ambiente político reinante no Brasil.

Talvez muita gente no governo não perceba, mas estamos num período de turbulências. As coisas vão ficar bem mais difíceis. Poderíamos estar mais bem preparados para enfrentar esse momento, mas o governo perdeu muito tempo batendo cabeça.

Antes que seja tarde, os conselheiros do presidente poderiam providenciar logo um bom manual para Lula. Não precisam ir muito longe. Basta buscar um exemplar no gabinete do ministro Márcio Thomaz Bastos (Justiça).’

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‘De vítima a vilão’, copyright Folha de S. Paulo, 13/05/04

‘Quando a nota anunciando a expulsão do jornalista do ‘New York Times’ chegou à Redação por e-mail, a primeira reação foi de incredulidade. Era preciso checar se não se tratava de um trote.

Afinal, era um ato de intolerância, típico de republiquetas de bananas, que não parecia combinar com um governo que se diz democrático. Sem falar que era uma burrice tremenda, o autêntico tiro no pé.

Alguns minutos depois, assessores do Ministério da Justiça confirmavam a autenticidade do documento, enviado sem aviso prévio. Constrangidos, diziam que estavam apenas ‘executando’ uma decisão tomada pelo Palácio do Planalto.

Comunicado em nota de apenas cinco linhas, o ato extremo causou um dos maiores estragos na imagem do governo Lula. Nivelou-o a ditaduras que, ao não tolerar críticas e idéias divergentes, simplesmente expulsam seus adversários.

Permite comentários de que caiu definitivamente o véu, expondo a faceta autoritária de um governo que já adotou prática semelhante com antigos aliados -quem não se lembra da expulsão da senadora Heloísa Helena e do deputado Babá?

O argumento oficial de que a decisão visava defender a imagem presidencial, associada no artigo do jornalista norte-americano a excessos alcoólicos, é de um enorme amadorismo. O resultado foi o oposto. Impingiu-lhe uma nódoa que ficará exposta até o fim do mandato.

O mesmo Lula que foi relacionado neste ano pela revista ‘Time’ como uma das cem personalidades mais influentes do mundo atual agora é acusado de stalinismo retardado, truculência e censura.

No final, a reação desmesurada amplificou um episódio que repercutia muito mais dentro do governo. Se antes estava restrito a um grupo menor, passou a fazer parte das conversas de botequim e ganhou as páginas da imprensa internacional. Transformou vítima em vilão.’