Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Garoto ruim de bola



Sobre as antas poderosas, ávidas de matar o sonho alheio – não! Derrama sobre elas teu olhar mais impiedoso, Deus, e afia tua espada. (Caio Fernando Abreu, Pequenas epifanias)


Criou-se a mentalidade, entre os leitores de jornais e revistas, de que todos odeiam Diogo Mainardi, mas que todo mundo o lê. Mentalidade que virou marketing dele próprio, da revista que o publica e dos que acham o máximo o que ele escreve.


Em parte isso é verdade. Suas crônicas provocam no leitor o mesmo efeito que o programa Pânico na TV: acaba-se assistindo (ao programa) ou lendo (o colunista) só para ver até aonde vai o cabotinismo. Exceto, claro, aqueles que o idolatram – em grande parte gente que almeja pertencer à elite. Nesse sentido, ele pode continuar ostentando o orgulho de colunista mais lido da Veja – embora a revista só reproduza trechos favoráveis das cartas que lhe são enviadas.


Diogo Mainardi aspira ao posto de polemista-mor da imprensa brasileira, vago desde a morte de Paulo Francis, em 1997. Para isso, usa de um expediente que qualquer leitor mais atento percebe com facilidade: sempre começa seus artigos com uma frase de impacto, em geral contra o Brasil, os brasileiros ou o governo Lula, para captar a bile ou o lado cretino do leitor. É um expediente manjado, mas que basta para a inteligência de quem o lê com assiduidade.


Não que Lula e seus partidários não mereçam crítica. Mas mesmo para criticar um governo inoperante e decrépito é necessário um mínimo de senso de medida.


Crítica sem risco


No dia 8 de junho, por exemplo, ele iniciou assim seu texto: ‘O período de ouro do cinema nacional foi entre 1992 e 1994. Fernando Collor de Mello cortou o financiamento público e nenhum filme foi feito’. Como é fácil prever, no restante do artigo ele se serve de uma linguagem virulenta e ressentida para desancar o cinema brasileiro, assegurando que nada de bom foi feito desde aquela época.


É bem verdade que ele próprio tentou fazer parte da talentosa safra de cineastas e roteiristas da chamada Retomada do cinema brasileiro. Na virada do milênio, em parceria com o irmão Vinícius, produziu os filmes 16060 e Mater Dei, este, segundo ele, ‘um trabalho que exigiu anos de esforço e discussão’.


A empáfia de sua afirmação, à época do lançamento de Mater Dei, de que precisou ‘ensinar alguns jornalistas a soletrar ‘Mãe de Deus’ em latim’, não condiz com a precariedade que os críticos apuraram na obra. O grande mérito que a crítica enxergou nos filmes foi que, para sua produção, não foram usados recursos públicos. Pelo menos foi com esse assunto que a crítica Isabela Boscov, da Veja, gastou o espaço que tinha para escrever sobre Mater Dei.


Também Mario Sergio Conti não se arriscou a elogiar a película: ‘O filme não se beneficiou de nenhum mecanismo de isenção fiscal nem teve dinheiro público em seu orçamento. Foi feito com tecnologia barata e filmado com rapidez’, destacou Conti.


Padre Marcelo melhor


A atitude de emitir uma opinião concreta sobre Mater Dei coube, entre outros, ao crítico da Folha Cássio Starling Carlos, para quem ‘a pretensão tem lá suas justificativas, mas o resultado é constrangedor’. No fim do texto, Starling Carlos diagnostica: ‘Mater Dei exerce um salutar efeito colateral sobre o espectador: quando acaba, dá vontade de sair correndo para assistir a um bom filme’.


Também o site Contracampo, um dos mais fecundos espaços de crítica de cinema na web, não se omitiu ante os oriundi. O crítico Felipe Bragança assim comentou Mater Dei: ‘Tecnicamente o filme é uma bomba. Porque se as máquinas estavam lá funcionando, quem as manuseava não sabia muito bem como chegar a seus objetivos. Vinicius Mainardi parece ter deixado a cargo de seu brother-roteirista todo o trabalho de construção de sentidos para o filme: sua escrita cinematográfica como diretor (montagem, decupagem, trilha sonora) é de uma inoperância atroz’.


E, mais adiante, sentencia aquilo que em 2001 já era evidente: ‘(…) É disso que eles vivem: de ser condenados por seu antinacionalismo e por seu niilismo inoperante. A confusão entre personagens e autores é uma ferramenta para fazer de si mesmos personagens importantes, protagonistas de um discurso em destaque. (…) Seu filme merece silêncio. É triste ver um realizador tirar dinheiro do próprio bolso para fazer um filme tão precário, tão ingênuo’.


Não se podia esperar opinião diferente sobre um filme que, segundo Vinícius, buscou ‘recriar os mitos de Jesus e Maria no Brasil contemporâneo’, e que, segundo os brothers, tentou ‘resgatar a gramática básica do cinema, estilo John Ford’. Com toda a crítica, padre Marcelo Rossi, com seu filme comercial sobre a mãe de Deus, deu de cinco a zero.


Pessoal anônimo


E nem era bem o caso de dinheiro do próprio bolso. O filme foi em parte custeado pelo empresário João Paulo Diniz, que injetou 300 mil reais na empreitada. Entusiasmado no início, o filho de Abílio Diniz logo percebeu a roubada que era trabalhar com os Mainardi. Tanto que a obra cinematográfica da dupla parou por ali, provando que a questão central não é tanto produzir um filme com recursos próprios (ainda que parcos), de empresas privadas ou com aporte estatal, mas simplesmente o projeto todo estar a reboque – vide cinema iraniano – do principal requisito que se exige de um diretor para que conquiste público e crítica: talento para transformar idéias simples em filmes geniais. E isso os filhos de Ênio Mainardi não mostraram. Pelo menos é o que a pequena fortuna crítica de seus filmes demonstra.


O fracasso dos filmes incomodou tanto Diogo Mainardi que um dia ele deixou o PT e o Brasil de lado e ocupou o espaço de seu artigo semanal na Veja para comentar os ‘malhos’ que Mater Dei recebeu da crítica. É um texto delicioso, para ser lido na rede com pipoca e guaraná. Diogo o iniciou em tom de lamento e no fim já espinafrava seus detratores. Seguem abaixo trechos do artigo, de 28 de novembro de 2001:




‘Fiz um filme. Recebeu malhos na imprensa. (…) A bilheteria de nosso filme caiu pela metade no dia em que os malhos foram publicados’.


‘Falei mal de tanta gente no passado que a vingança era previsível e perfeitamente natural. Virei uma espécie de bandido de faroeste, com a cabeça a prêmio’.


‘Nenhum problema com os malhos, portanto. O problema foi com os autores dos malhos. Não sei se por descaso dos editores ou pela crise que afeta a imprensa, que deixou as redações repletas de estagiários, fomos atacados por um pessoal anônimo, em começo de carreira ou com a carreira em fase descendente, depois de aventuras frustradas pela internet. Contra gente pouco qualificada não há o que fazer’.


Hora da farra


Talvez venha daí o rancor de Diogo Mainardi contra o cinema brasileiro. Assim como na crítica ele almeja ser um Bernard Shaw, um Karl Kraus, um Oscar Wilde, um Erza Pound, um T.S. Eliot, um H.L. Mencken, uma Pauline Kael, um Edmundo Wilson ou, vá lá, um Paulo Francis contemporâneo, imaginou que o irmão, que dirigiu o filme, pudesse vir a ser um Eduardo Coutinho, um Walter Salles, um Beto Brant no cinema.


Mas pode ter outra origem essa descompostura que ele passa no cinema brasileiro. Quem conhece um pouco Diogo Mainardi sabe: ele odeia tudo o que vem do Brasil. Nas páginas da Veja, podem ser lidas pérolas como estas, respectivamente sobre o ‘escândalo do mensalão’ e sobre o ano do Brasil na França:




‘Está a maior farra aqui em casa. Chegou a hora de tripudiar. De contar vantagem. De esfregar na cara. De soltar rojão. De me cobrir de glória. O depoimento de Roberto Jefferson na Comissão de Ética foi melhor do que Copa do Mundo’ (22 de junho).


‘Se eu fosse ministro das Relações Exteriores, ou o ministro da Cultura, ou o diretor da Cacex, evitaria exibir o Brasil lá fora. Nossa única chance é que o resto do mundo continue a nos ignorar’ (6 de julho).


Saborosa diversão


Muitas dessas frases fazem parte de sua estratégia para ganhar o leitor na primeira linha. Não informam, não educam, não levam a lugar nenhum a não ser a aguçar a curiosidade de ver até onde chega a boçalidade. O estranho é que, não se sabe se por conveniência ou porque não vale mesmo a pena, poucas pessoas colocam Diogo Mainardi na parede – Marília Gabriela só faltou babar em cima da mesa ao recebê-lo em seu programa.


Reconhecer a fragilidade intelectual de Diogo Mainardi é a coisa mais fácil. Basta vê-lo ao vivo e em cores no programa Manhattan Connection, exibido pelo canal GNT nas noites de domingo. Ali ele mostra o que é: o menino frágil e gaguejante que em vão se esmera em lograr na TV o mesmo efeito de seus textos na Veja. Ocorre que uma coisa é postar-se em frente ao notebook e destilar seus recalques. Outra é enfrentar as câmeras, por trás das quais ele sabe que estão muitos daqueles missivistas enraivecidos cujas cartas a revista Veja não publica.


Para quem passa raiva lendo Diogo Mainardi, assisti-lo no Manhatan Connection é uma saborosa diversão. Tão saborosa quanto a diversão que ele vê na luta renhida do povo brasileiro por melhores condições de vida, como quando comemorou as denúncias de Roberto Jefferson que detonaram a atual crise política no país – crise que, segundo a opinião de gente com senso de medida como Roberto Romano, professor de Filosofia e de Ética da Unicamp, ‘é uma situação terrível, que se traduz em mortes, na subtração de recursos das áreas sociais e na perda de auto-respeito do povo’ (GloboNews Painel, 18/7/2005). Mas Diogo Mainardi está pouco se lixando para a perda de esperança do povo na política, ele que um dia escreveu que filho de pobre tem mais é que ficar em casa assistindo Scooby Doo, em vez de freqüentar a escola.


Diversão e piedade


Depois que passou a substituir (não à altura) Arnaldo Jabor, o esquema do programa tem sido esse: Lucas Mendes, Caio Blinder, Ricardo Amorim e Lúcia Guimarães discutem com descontração e propriedade os temas do dia, enquanto Diogo Mainardi fica na tela, esperando que lhe peçam a opinião. Instado a falar, sempre leva o tema – seja ele qual for – para a diminuição do Brasil ou do povo brasileiro.


Pelo semblante dos outros participantes, percebe-se que ninguém o leva muito a sério no programa. Ele está ali como o bobo da corte, diversão garantida para o público. No fundo ele é como aqueles meninos ruins de bola cujo pai um dia pára a pelada e pede aos outros meninos que deixem seu filho jogar. Aceito no jogo, e apesar de não levar o menor jeito para o trato com a bola, logo o pai está pedindo para os meninos deixarem ele marcar um gol.


Diogo Mainardi não está mesmo longe disso. No país em que floresce a geração de filhos de grandes artistas que têm as portas da carreira abertas tão-somente por esta genética condição, ele, que nem jornalista é, sem dúvida teve muitas de suas portas abertas por ser filho de quem é. Papai Enio Mainardi abriu as portas da imprensa, do cinema e da televisão para o bambino. E, tal como o menino cujo pai pede para fazer um gol, ele pode brincar de roteirista, de escritor, de polemista e de vade-mécum da elite mais reacionária.


Ante a mentalidade de que Diogo Mainardi inspira ódio em seus leitores, é preciso dizer que, em sua afasia intelectual, ele também inspira diversão e piedade.

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Jornalista, editor e escritor, premiado em 2004 no Rumos Itaú Cultural, na categoria Jornalismo Cultural