O último a sair vai acabar se esquecendo de apagar as luzes, tantas foram as vezes que no meio jornalístico se falou na decadência e no iminente fechamento do jornal Gazeta Mercantil. Agora, aparentemente, o desenlace de uma história que começou em 1920 está próximo, cada vez mais próximo.
Na segunda-feira (25/05), um comunicado publicado na primeira página da própria Gazeta informava que o grupo que atualmente controla o jornal – Editora JB S.A., de propriedade do empresário Nelson Tanure – decidiu rescindir o contrato de arrendamento da marca Gazeta Mercantil e devolver o comando do jornal ao antigo dono, Luiz Fernando Levy. No mesmo dia, Levy avisou a redação que não tem mais interesse no negócio (ver aqui).
Algumas horas mais tarde, o site da Gazeta informou que ‘a CBM [Companhia Brasileira de Multimídia, de Nelson Tanure], por meio da Editora JB, encaminhou correspondência à Gazeta Mercantil reafirmando sua disposição em apoiar o processo de transição para a retomada da edição do jornal Gazeta Mercantil pela empresa de Luiz Fernando Levy a partir de 1º de junho’. A matéria informa também que a Editora JB propôs ‘a constituição de um grupo de representantes das duas empresas para formalizar o termo de distrato e definir como a Editora pode colaborar para que não ocorra qualquer descontinuidade operacional’.
O desfecho da história ainda não é certo. Se Levy não quiser de volta o jornal, há a possibilidade, aventada pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, do ‘direito de uso da marca destinar-se a entidade sem fins lucrativos criada mediante entendimentos entre funcionários e o Tribunal da Justiça do Trabalho, com vistas ao usufruto de rendas oriundas da comercialização do jornal’, conforme nota publicada no site do sindicato.
É possível, portanto, que a Gazeta Mercantil não feche as portas no dia 1º de junho, mas a verdade é que nunca esta situação esteve tão perto de se concretizar. Se deixar de circular na próxima segunda-feira, cada dia sem jornal nas bancas (e nas mãos dos assinantes) representará uma dificuldade a mais para o jornal se reerguer.
As razões de Tanure
De acordo com a matéria dada no site da GZM e com o comunicado publicado no jornal, o empresário Nelson Tanure decidiu pela recisão contratual em função da ‘incessante penhora de receitas financeiras do uso da marca Gazeta Mercantil para garantir o pagamento de obrigações trabalhistas da Gazeta Mercantil S. A., de propriedade de Luiz Fernando Levy, relativas a períodos anteriores à celebração do contrato de arrendamento da marca pela Editora JB’. Segundo o atual controlador, ‘o desinteresse em continuar o contrato de licenciamento e uso da marca Gazeta Mercantil resulta da indevida imputação de dívidas que absolutamente não são da Editora JB, e sim da Gazeta Mercantil S.A.’.
Ainda de acordo com a versão de Nelson Tanure, a CBM já realizou, desde dezembro de 2003, quando arrendou a marca do diário econômico, ‘adiantamentos à Gazeta Mercantil S.A. que beiram R$ 100 milhões, devidamente certificados pela BDO Trevisan’.
A Associação dos Funcionários e Ex-Funcionários da Gazeta Mercantil, porém, contesta a versão de Tanure e diz que a atitude do atual controlador não muda nada para quem tem ações contra a empresa e a Editora JB. Segundo escreveu Marcelo Moreira, presidente da associação, em comentário no portal Comunique-se, ‘o empresário [Nelson Tanure] e suas empresas já foram responsabilizados judicialmente por conta das ações trabalhistas contra a GZM. A sucessão [das dívidas trabalhistas] foi reconhecida’. Moreira espera que, na impossibilidade de um acordo com Levy, a marca da Gazeta seja arrestada judicialmente em favor da associação que preside.
Origens da crise
A situação hoje dramática da Gazeta esconde um passado de muito sucesso. A partir de meados dos anos 1970, o jornal se consolidou como o principal diário especializado em economia do país. Sob a direção de Roberto Müller Filho, o jornal brilhou, assumiu não apenas a liderança quantitativa, com uma tiragem que chegou a superar os 100 mil exemplares, como caiu no gosto do empresariado nacional e dos gestores da máquina pública. Contando com uma equipe de jornalistas muito bem preparados, vários deles formados na própria casa pelo lendário Matías Molina, outros escolhidos a dedo e trazidos de revistas e jornais gerais, a Gazeta sabia promover (e manter) os seus talentos.
Armênio Guedes, Glauco Carvalho, Celso Pinto, Tom Camargo, Getulio Bittencourt, Sidnei Basile, Mário Alberto de Almeida, Lilian Witte Fibe, Ottoni Fernandes Jr., Paulo Totti, Aloysio Biondi, Dirceu Brisola e Klaus Kleber foram alguns dos reconhecidos talentos que trabalharam sob a batuta de Müller (que deixou o jornal no meio da década de 1980 para ser chefe de gabinete do então ministro da Fazenda Dilson Funaro; depois voltou e em meados dos anos 90 assumiu a secretaria de Estado da Ciência e Tecnologia na gestão de Fleury Filho, em São Paulo).
De meados dos anos 1970 até a primeira metade da década de 1990, sob o comando de Müller, a liderança da GZM era indiscutível. No período final dos anos 90, porém, os problemas financeiros já eram conhecidos dos jornalistas, especialmente após a criação das 21 redações regionais e a introdução de uma edição latino-americana, mas a confiança na superação também era inabalável. Afinal, um jornal como a Gazeta Mercantil não tinha como perecer, mesmo que o total de profissionais trabalhando na empresa tivesse saltado de 100 para mais de 500 em cerca de cinco anos.
No fundo, a crise da Gazeta não começou muito diferente do que em outros jornais brasileiros. É só voltar no tempo: meados da década de 1990, Plano Real, estabilidade (e forte apreciação) da moeda nacional, início da revolução das novas tecnologias no país (telefonia celular, internet, televisão a cabo etc.). Grande parte dos conglomerados de comunicação do Brasil decidiram entrar de cabeça na aventura das novas tecnologias. A idéia reinante era de que quem ficasse de fora, iria ver a história passar na janela, como a Carolina da música do Chico Buarque.
Alguns investiram pesado em televisão a cabo (Abril, Globo), outros preferiram gastar com o desenvolvimento de serviços na internet (Folha, Estadão, JB, GZM). Outros fecharam parcerias com empresas de telefonia móvel, prospectaram novos mercados, flertaram com a diversificação de atividades. E quase todos se endividaram bastante para realizar os novos investimentos, a maioria contraiu dívidas em dólar porque o câmbio estava muito favorável. Estava, mas poucos anos depois, em 1999, o Brasil quebrou e o real forte simplesmente acabou. Forte mesmo, só o dólar, que fez mais do que dobrar o valor das dívidas, em reais, das empresas de comunicação. Para piorar a situação, em 2000 veio o ‘estouro’ da bolha da internet, que revelou aos empresários um fato desolador: a internet não era lucrativa, ou pelo menos não seria no prazo que imaginavam, salvo as exceções que só comprovavam a regra.
Com problemas sérios de gestão, a Gazeta Mercantil e tantos outros jornais brasileiros enfrentaram uma crise profunda. A receita tradicional para os problemas desta ordem começou a ser aplicada: grandes cortes nos custos (especialmente em recursos humanos), renegociação das dívidas com os credores e, como não poderia deixar de ser, acenos para que o governo estendesse a mão amiga. Ainda no final da gestão Fernando Henrique Cardoso, a ajuda veio na forma da flexibilização da legislação, que vetava o capital externo no setor de mídia. Quando o Lula assumiu a presidência, porém, a situação ainda era dramática e se falava em um ‘Pró-Mídia’, com injeção direta de capitais via BNDES.
Valor Econômico: concorrência no mercado
O tal ‘Proer’ da imprensa não vingou, mas a recuperação econômica, a partir de 2004, mudou o cenário e permitiu a boa parte das empresas de comunicação algum fôlego. No caso da Gazeta, que investira em internet, ampliação das redações regionais, introdução de uma edição latino-americana e até em televisão, em parceria inicialmente com a TV Bandeirantes, depois com a TV Gazeta, havia um problema adicional, além dos conhecidos problemas de gestão: concorrência.
Em maio de 2000, os grupos Globo e Folha lançaram, juntos, um jornal especializado em economia – o Valor Econômico. A primeira edição circulou no dia 2 de maio sob o comando de Celso Pinto, Carlos Eduardo Lins da Silva – este, o atual ombudsman da Folha de S.Paulo – e Vera Brandimarte. Com um time de primeira qualidade – boa parte dos jornalistas foram recrutados da própria Gazeta – o Valor começou a ocupar espaço. Com dinheiro para campanhas publicitárias e um estilo arrojado que constrastava bastante com o projeto gráfico tradicional da Gazeta, o Valor Econômico foi se firmando como o grande jornal de economia do país.
Sidnei Basile, hoje executivo da Editora Abril, em entrevista concedida à Hérica Lene, autora da tese ‘A crise da Gazeta Mercantil: tradição e ruptura no jornalismo econômico brasileiro’, afirma que em cada mercado nacional relevante só há espaço para um grande jornal de economia. Ex-diretor de Redação da Gazeta, Basile lembra os exemplos do The Wall Street Journal, nos Estados Unidos, Financial Times, na Inglaterra, Les Echos, na França, Il Sole 24 Ore, na Itália e justifica a sua tese dizendo que ao contrário da notícia cotidiana, que tem caráter regional, a de economia tem característica nacional. Assim, os jornais de economia e negócios precisariam necessariamente ter dominância nacional para poder pagar a operação.
Solução Tanure e a morte anunciada
A tese de Basile pode até estar errada, mas o fato é que a partir de 2000 a situação da Gazeta foi se agravando rapidamente ao passo que o Valor conquistava – mais em status no mercado publicitário e entre os formadores de opinião do que propriamente em circulação – a posição que até então sempre fora da Gazeta. Com sucessivos problemas para fechar o mês, o jornal atrasava o pagamento de salários e faturas dos fornecedores, não depositava o dinheiro do Fundo de Garantia dos trabalhadores, enfim, começava a correr sérios riscos de ter problemas para manter sua operação em funcionamento.
Em dezembro de 2003, quando a situação do jornal era claudicante, apareceu o empresário Nelson Tanure com uma oferta de arrendamento da marca Gazeta Mercantil em troca de um valor anual (3% da receita da Companhia Brasileira de Mídia, algo em torno de R$ 8 milhões ao ano), além de adiantamentos para dar conta do passivo trabalhista que Luiz Fernando Levy já não conseguia pagar com os recursos gerados pelo jornal. Depois de uma breve negociação, Tanure assumiu o controle do jornal e iniciou uma operação para torná-lo mais enxuto e rentável. O pressuposto do negócio, porém, era o de que o passivo trabalhista deveria permanecer sob a responsabilidade de Levy, enquanto ele, Tanure, manteria e modernizaria a Gazeta Mercantil.
O que está na raiz desta mais recente crise, talvez a última do jornal, é justamente o fato de a sucessão das dívidas trabalhistas ter sido reconhecida pelo judiciário e Tanure ter passado a ver bens seus e de suas empresas penhorados para pagar os credores. Nelson Tanure aparentemente não queria a Gazeta para produzir um bom jornal, mas para fazer um bom negócio, cuja definição por excelência é pagar pouco e receber muito. Não deu certo, Tanure de fato pagou pouco, mas não está levando coisa alguma – ao contrário, o passivo trabalhista, mesmo com o rompimento, é um fantasma a lhe assombrar.
Assim, dá para entender por que Luiz Fernando Levy não quer de volta o mico que passou a Tanure. Nada a ver com jornal ou jornalismo, o problema dos dois empresários são as contas que não fecham. O pior de tudo é imaginar os trabalhadores do jornal assumindo a Gazeta com a ilusão de poderem repetir modelos do estrangeiro e emplacar uma espécie de autogestão daquilo que no fundo não passa de uma massa falida. É o que falta para o Valor nadar de braçada e se consolidar como o jornal de economia do Brasil. Um final melancólico para uns, estimulante para outros…