Em idos da década de 1970, Chico Buarque criara, entre crítica e poesia, a figura sofrida de Geni, aquela mesma que se voluntariara a satisfazer os desejos do tenebroso forasteiro do zepelim e assim salvar a vida dos seus conterrâneos. Após a consumação do ato, a moça fora execrada pela população, desejosa de restituir seu equilíbrio moral. Tal figura materializa a ideia do bode expiatório, para onde convergem todas as pedras (morais e físicas) provenientes das incansáveis mãos (e bocas) dos cidadãos de bem. Cria-se assim a metáfora do inimigo público numero um, o grande malfeitor da sociedade, para pensar as efemérides divulgadas constantemente na cobertura midiática brasileira atual, como as operações da Polícia Federal e, ainda mais recentemente, a nova condenação do traficante Luiz Fernando Costa (Fernandinho Beira-Mar), explorada em prosa e verso pela cobertura jornalística da última semana.
Em cada manchete (eletrônica ou impressa) sobressai o aspecto da condenação midiática, muito mais do que judiciária, e a personalização dos crimes, quando existentes. Alguém parece sempre ter a culpa de todos os males, reais ou fictícios. Não parece ser por acaso que em grande parte dos títulos sobressai o subjetivismo das ações divulgadas, como se, na simples escrita jornalística, fulgurasse o suprassumo da mais alta isenção profissional. Ledo engano. O que parece ser criado, bem nos moldes do que Muniz Sodré (2010) conceituara com a apresentação representativa da mídia, seria então a criação de valores na divulgação e a qualificação (ou desqualificação) dos personagens centrais das notícias, sendo estes alçados ao lugar de heróis ou vilões ao bel prazer das editorias. Um bom exemplo desta prática revela-se na matéria do dia 14/05/15 do site da CBN, que indica o traficante como “celebridade” [ver aqui] ou na intensa cobertura sobre a presidente da República onde erros e acertos são identificados como provenientes somente da vontade única e exclusiva de Dilma Rousseff, ignorando o sistema representativo de três poderes existente no país e buscando referenciar a uma pessoa os desacertos do atual governo.
A lógica faria Charles de Montesquieu, autor francês da teoria dos três poderes, corar de vergonha e favorece a adesão afetiva ao noticiário para eleger quase sempre a Geni a ser sacrificada no sagrado altar do bios midiático. No esvaziar reflexivo sobre um sistema político que se supõe representativo encerram-se não somente as lógicas empresariais das mídias, mas algo pior: a tentativa de afastar público de um cenário social que se pressupõe coletivo e, portanto, de responsabilidade de cada membro da sociedade. Seria o caso de compreender o afastamento do jornalismo da esfera da comunicação social como um sintoma muito representativo da personalização do noticiário, como se coubesse ao leitor somente a escolha de César de erguer ou baixar o polegar, condenando ou absolvendo o personagem. Assim, ficaria a política alijada do social e restrita aos que vivem dela, a saber, veículos de comunicação e políticos, instrumento de manipulação e alijada da coletividade, para quem, quase sempre, a política é algo distinto do cotidiano. No cada vez mais raro espaço público de debate sobram as forcas e pedras a serem utilizadas sem distinção, apontadas para as cabeças das “Genis”, cuidadosamente preparadas pelos veículos de mídia. Parafraseando Bertolt Brecht, infeliz da nação que precisa de heróis. E Genis.
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Tatiane Mendes é jornalista