Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Gigolô, não. Companheiro



Eles chegam de mansinho, investem no namoro, prometem amor eterno e – logo, logo – decidem firmar a relação. Partem para dividir o mesmo teto, o mesmo carro e os mesmos bens, mas quem paga a conta, ao contrário do que prega a cartilha dos bons modos, é a dama. Infelizmente, casos assim não são novidade’ (‘Suplemento Feminino’ de O Estado de S. Paulo, 22/10)


A matéria ‘Gigolôs modernos’ discute, sem subterfúgios, um tema que poderia – e deveria – fazer parte das pautas das revistas femininas. Sem se preocupar com a auto-estima das leitoras, o jornalista presta um belo serviço, ao mostrar que esse tipo de comportamento não é novidade (antigamente as professoras eram as vítimas mais comuns), mas a postura da mulher continua a mesma: ‘É difícil admitir que o outro está com ela pelas vantagens que o vínculo lhe proporciona, e não porque a considera um bom objeto de amor’, como diz a psicóloga Lidia Aratangi.


O que diferencia a matéria do jornal das eventuais matérias sobre o assunto nas revistas femininas é o enfoque. No jornal, o assunto é colocado como um real problema. Nas revistas femininas, quando aparece, é mostrado como uma opção das mulheres: elas são as provedoras que investem no futuro do companheiro e da relação, cheias de justificativas como liberação feminina, igualdade entre parceiros etc. etc. Talvez por ter sido escrito por um homem, o texto do jornal consegue ir ao que interessa: em nome da liberação e dos novos tempos, as mulheres são exploradas e demoram a perceber isso. E as revistas femininas, que teoricamente conhecem bem a mulher, seus problemas e anseios, só reforçam os comportamentos negativos. Tudo em nome da liberação.


‘Amigas das mulheres’


E é em nome dessa liberação feminina que Nova de outubro, por exemplo, trata as mulheres como seres que só têm uma preocupação na vida: o namorado, amante ou marido. Como se falasse com adolescentes que estão no primeiro namoro, desfila matérias do tipo: ‘Ele te ama. Alguns indicadores sutis, mas significativos, de que só cabe você no coração dele’; ‘Meu namorado pediu um tempo’; ’50 truques já-prá-cá de sedução. Conselhos de nossos especialistas para se tornar poderosa em dobro’.


As mulheres retratadas, que certamente não refletem a realidade das leitoras, são adolescentes inseguras que usam a liberação – tanto sexual como profissional – somente com o objetivo de se fazerem mais atraentes para os homens.


Como disse Marina Colasanti num artigo para uma outra fase da mesma revista Nova (década de 80), ‘Antigamente a mulher fazia sobremesa para agradar o homem. Agora ela é a sobremesa’. A frase pode até ter sido um pouquinho diferente, mas a essência é o que vale: as revistas femininas como Nova fazem uma interpretação atrapalhada do movimento feminista, transformando o que deveria ser um direito – o direito ao prazer e à liberdade sexual – numa objetização da mulher. A acreditar em Nova e seus truques milagrosos, mulher poderosa é a que conhece todos os truques de sedução… para segurar o homem.


Mas, para não dizer que a mulher Nova só pensa nisso, a revista também fala de trabalho, como na matéria ‘Empresas amigas das mulheres’. Pode ser até que essas empresas tenham uma política de igualdade salarial para homens e mulheres, um plano de saúde e benefícios extraordinários, creches e outros itens que fazem a pauta das reivindicações sindicais. Mas isso, na opinião de Nova, não deve ter a menor importância. Importante mesmo, segundo a matéria, são os outros pontos: ‘Fazer manicure, massagem e depilação no próprio escritório, poder trabalhar em casa sem culpa, sair mais cedo na sexta-feira para ir ao shopping… Não é promessa de político, não. Um número cada vez maior de companhias nacionais e multinacionais está criando benefícios para melhorar a nossa vida. Bem-vinda à nova era do trabalho’.


Pensamento conservador


Como curiosidade, a matéria até vale. O problema é que, apesar de bem-intencionadas, matérias desse tipo acabam reforçando o preconceito contra mulheres no mercado de trabalho. Se elas ficam felizes com manicure, depilação e liberdade para ir ao shopping, que moral têm para exigir salários iguais aos dos homens?


Mas, na medida em que fala de mulheres satisfeitas e que conseguem até liberdade de horário e tempo extra para os cuidados pessoais, a revista afaga o ego das leitoras e mostra que está certa em sua mensagem: a mensagem de que a mulher tem que fazer de tudo para se manter no seu lugar. Talvez, por isso, matérias como ‘Gigolôs modernos’ não tenham espaço nesse tipo de revista. Mulheres que enfrentam problemas reais não cabem nas páginas coloridas e cheias de futilidades de revistas para mulheres ‘liberadas’.


Revistas como Nova acabam criando uma grande confusão na cabeça de suas leitoras. Elas acreditam que podem tudo, mas esquecem que vivem num país ainda dominado pelo pensamento conservador. Para Nova, suas leitoras são liberadas. Para a grande maioria dos homens, são apenas libertinas, mulheres que eles podem usar, sem qualquer envolvimento maior. Mulheres que, como mostra a reportagem sobre os modernos gigolôs, acabam vítimas de uma interpretação errada do movimento feminista.

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Jornalista