Há um quê de antigo, muito antigo, na última campanha de Gisele Bündchen para a Sky que entrou no ar esta semana. Para tamanha novidade, gritaram os títulos nas notícias da imprensa brasileira: ‘Gisele Bündchen posa de dona de casa e pinta unha do pé em campanha. Top brasileira estrela comercial em que interpreta mulher abandonada pelo marido.’
Nesse comercial, Gisele veste a roupa de uma dona de casa que, separada do marido, a viver na solidão, aguarda a volta do príncipe. A julgar pela declarações do publicitário que fez a campanha, Gisele nesse papel está uma típica dona de casa. À semelhança da mulher brasileira, ele supõe. E que saque de gênio, pôr uma estrela top em carne comum. É como se a princesa dos sonhos de todo o mundo, como ele supõe, descesse à realidade plebeia encarnando uma senhora frágil, de pernas longas e finíssimas, pois Deus não lhe deu outras, e ficasse a esperar o grande dia, o da volta do maridão.
Esclarecem as notícias, em seu tom mais prosaico, a contar o enredo do céu em inglês como se fosse o relato fiel de uma deusa que desceu para se transformar em mulher comum:
‘No atual comercial, ela surge de vestido de chita e avental, sugerindo que estava envolvida com tarefas domésticas. Magérrima, ela solta os cabelos e corre para os braços do amado (interpretado pelo ator Augusto Madeira) após ouvir o barulho do portão. Há um terno abraço e, enquanto estão enroscados, ele vai empurrando a esposa para pegar o controle remoto e ligar a televisão. É divertido. O fundo musical é o clássico O Portão, do repertório de Roberto Carlos’. Nesse filme, o marido troca a mulher Gisele pela televisão, como se vê aqui http://www.youtube.com/watch?v=PoCfYcUawwI&feature=player_embedded
Um comercial clássico, do fim dos anos 50
A isso esclarece o roteirista: ‘Nesse filme ela age como qualquer mulher esperando o marido. É a Amélia dos sonhos masculinos’, brinca John, autor do roteiro produzido pela O2 Filmes. ‘Mas as mulheres também vão se sentir vingadas ao ver a mulher mais cobiçada do mundo numa situação tão familiar.’ Ele, John, crê que sim.
Notem. Nem sempre a gente precisa ser cruel para ser verdadeiro. Como prova do quanto a propaganda de Gisele vê a mulher como um ser do fim dos anos 50, compare-se o roteiro acima com o de um comercial da geladeira Cônsul, aqui http://www.youtube.com/watch?v=VAtyZoV1MLY. Nele, o maridão abre a porta da casa, um marido cujo ator possui a cara e o nariz de Fernando Collor, e beija a testa da mulher, que faz biquinho e anuncia: ‘Ela já chegou’. E ele: ‘Ah é, é? Deixa eu ver’. Ela é a geladeira. Então a mulher abre a porta, da geladeira e o marido, esquecido dela, a esposa, entra nela, a geladeira, e fica lá, feliz e risonho. É ou não a mesma troca da esposa por um eletrodoméstico?
Como reflexo da posição da mulher, compare-se o de Gisele com este comercial clássico do perfume Damosel, do fim dos anos 50. Esse é um clássico que vai além da imagem, do roteiro e da narração porque aponta os valores máximos para a mulher em 1958, que culminavam no casamento. Pode ser visto aqui: http://www.youtube.com/watch?v=LuggBGGebdY
Cheiro, trilha e modernidade
E que narração! Vale a pena transcrever: ‘Recém-casados, eles estão recordando todos os momentos perfumados com Damosel. E você também, minha amiga…’ (Imagem de uma catedral) ‘…quando estiver saindo da igreja no dia feliz do seu casamento…’ (imagem da noiva em seu largo vestido, a descer as escadas, suntuosa) ‘… recordará com carinho todos os instantes do seu romance’ (fotógrafo tira fotos dos felizes pombinhos. O casal entra no carro). Então vem a voz cavernosa do narrador, cuja tom cavernoso era o modelo daqueles anos de feliz pesadelo: ‘Damosel, o perfume que dá felicidade, é composto das mais deliciosas essências dos cinco continentes.’ Sempre, do começo ao fim, o belo som da música Fascination, que pontua a frase: ‘Damosel é um convite para o sonho. O perfume de Damosel foi inspirado no culto do amor, encantamento e felicidade. Comece a viver hoje mesmo o seu sonho perfumado com Damosel, de Atkinsons.’ Imagem de um casal à beira de um rio no crepúsculo.
Agora vem um corte, mas não no tempo, porque no comercial mais recente 1958 e pessoas se reúnem como se o tempo não houvesse passado. No último desta semana se encontram Roberto Carlos, Gisele Bündchen e a antiga mulher, que continua a esperar a volta do marido. Em vão, coitada, pois ele a troca por uma TV do céu Sky. Fica um cheiro de naftalina. Comparado ao Gisele no Sky, bem melhor era o anúncio do Damosel, como cheiro, trilha e modernidade.
******
Escritor e jornalista