Fevereiro de 2011. Este mês será lembrado como marco do retrocesso do futebol brasileiro. Será mais um símbolo da força que a Rede Globo exerce sobre o povo brasileiro. E poderia não ser desta maneira. Se o futebol brasileiro fosse tocado por pessoas sérias, fevereiro de 2011 poderia simbolizar a guinada ao primeiro mundo do futebol. A capitalização do futebol pelos recursos da disputa pelo direito de transmissão do Campeonato Brasileiro significaria um novo período de bonança para os clubes de futebol: manutenção e retornos dos craques, atração de estrangeiros (principalmente dos craques latinos), a internacionalização do nosso futebol e a concorrência contra os gigantes clubes europeus. Isso tudo viria da organização do futebol brasileiro para seu desenvolvimento.
E é claro que vale ressaltar que isso só poderia ser possível depois que o Estado brasileiro impediu a continuidade do monopólio das transmissões de futebol. No final do ano passado, o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica – órgão responsável por coibir abusos de poder econômico) acabou com a exclusividade da Globo sobre o contrato de transmissão dos jogos, obrigando o Clubes do 13 a abrir uma concorrência pública para os direitos de transmissão nas mais diversas mídias. Tudo caminhava de maneira bem transparente, os clubes prepararam um edital, ouviram os interessados e esperavam arrecadar uma soma bilionária para os campeonatos de 2012 à 2014. Mas as coisas não seriam tão simples. A Rede Globo não aceita que seus interesses sejam contrariados, nunca aceitou. E isso não é só no esporte: é na política, na economia, na cultura nacional. Em conluio com a CBF (Confederação Brasileira de Futebol), ela acaba de destruir o Clube dos 13. A partir do suborno e da chantagem, a Globo impediu que a ‘união dos grandes clubes brasileiros’ pudesse democraticamente promover a concorrência e a livre negociação do seu maior produto, o Campeonato Brasileiro.
Um pouco de história
A Globo não aceita perder sua influência na vida dos brasileiros. A Rede Globo rejeita a democracia, rejeita a legalidade, rejeita os interesses públicos. E isso não é de hoje. É bom neste momento recordar a forma pela qual a Globo construiu seu império midiático. A Globo só chega hoje onde ela chega, com seu ‘padrão de qualidade’, influenciando a vida de todos os brasileiros, porque se aproveitou de todas as benesses de quem teve o poder no Brasil. A Globo só deixou de ser um grupo pequeno carioca (com um jornal e uma rádio) para se agigantar com a ditadura militar. De forma ilegal, ela se aliou ao grupo americano Time Life para a construção da TV Globo, em 1962, com um aporte de 6 milhões de dólares (até 2002, era proibido a presença de capital internacional nas empresas de comunicação brasileiras). Depois de descoberta a maracutaia, a Globo desfez o acordo, mas já era tarde para a concorrência. Com o apoio dos militares, a Globo fez parte do projeto de integração nacional pelas telecomunicações, construindo a sua rede nacional de emissoras e chegando a todo o país. A Globo foi um dos pilares para os 20 anos de ditadura militar no Brasil.
No processo de redemocratização do país, a Rede Globo só ‘abraçou’ a mobilização popular quando a queda dos militares era iminente. A emissora não cobriu as diversas mobilizações pelas ‘diretas já’, chegando até o clássico caso do comício que reuniu milhões na Praça da Sé, em São Paulo, e a Globo noticiou que estava acontecendo uma comemoração do aniversário da cidade, enquanto os outros canais entravam com flash ao vivo das manifestações. Este foi um dos motivos da existência da palavra de ordem ‘o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo’. Isso sem contar outros casos, como a manipulação do debate entre Lula e Collor em 1989, o apoio às privatizações e ao governo FHC e o ataque sistemático ao governo Lula. Além disso, a Globo nega e impede qualquer proposta de regulação pública e debate público sobre as comunicações no país. Ela agiu contra a criação da Ancinav (agência que regularia o audiovisual brasileiro) em 2004, se negou a participar da Conferência Nacional de Comunicação e rejeita qualquer mudança na caduca legislação do setor. E assim a Globo mostra como ainda é uma das instituições mais poderosas do país. Apesar de que, ao longo dos anos, vem perdendo sua audiência e a influência na população brasileira.
Desmoralização das instituições
Hoje a Rede Globo está em confronto aberto com a Rede Record e seu mantenedor, o bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus. A Globo ainda se vê cada vez mais acuada pela convergência das mídias, com as jamantas das empresas de telecomunicações avançando pela TV por assinatura, internet e distribuição de conteúdos. E nesse cenário, por que ela iria respeitar uma determinação antimonopolista do Cade?
Para a Globo, a lei, a regulação, o interesse público sempre foram detalhes a serem esquecidos. E a atual disputa pelos direitos de transmissão é um caso notório. A Globo e o Clube dos 13 assinaram um Termo de Compromisso de Cessação em outubro de 2010 concordando com o fim da preferência na compra do campeonato e a venda separada por mídias. O Clube dos 13 cumpriu sua obrigação, mas a Globo não. Ela preferiu agir, à sua maneira corriqueira, com um golpe. E sem nenhum constrangimento. Em nota oficial, a Globo afirma que é contra o edital do Clube dos 13, alegando que a existência da concorrência entre as emissoras e a separação do edital por mídia (TV aberta, TV por assinatura, PPV, internet, celular) inviabilizaria seu modelo de negócio. A Globo ainda publicou anúncios em todo país afirmando que está agindo em respeito ao torcedor. Ela desmoraliza o acordo com o Estado brasileiro e ainda tripudia da população.
Mas a emissora da família Marinho não aceita perder o jogo. Sua jogada é simples: rachar o Clube dos 13 e negociar individualmente com os clubes, em uma clara tentativa de manobra do acordo com o Cade. Corinthians, Flamengo, Botafogo, Fluminense, Vasco, Cruzeiro, Coritiba, Grêmio e Palmeiras e Santos já se submeteram ao poder global e anunciaram não aceitar a negociação realizada pelo Clube dos 13. Apenas São Paulo, Atlético Mineiro e Internacional resistem até a abertura dos envelopes dos editais, em 11 de março. Em reunião com o presidente do Clube dos 13, nesta última terça-feira, o presidente do Cade, Fernando Furlan, disse que um provável acordo entre os clubes e a emissora poderá ser alvo de um outro processo no órgão. Enquanto isto, Fábio Koff, presidente do Clube dos 13, insiste em dizer que a entidade ainda tem a prerrogativa de negociar os direitos de transmissão de seus associados. Oficialmente, apenas o Corinthians confirmou sua retirada do C13. A desmoralização do futebol brasileiro segue em ritmo acelerado.
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Jornalista e militante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social