Em 21/05/2008, o Bom Dia Brasil exibiu matéria sobre a reação indígena à construção de uma hidrelétrica na região amazônica. As imagens apresentadas são mais curiosas que chocantes. Os índios cercaram um engenheiro da Eletrobrás, ameaçaram-no com tacapes e facões, rasgaram sua camisa e deixaram-no sair quase ileso do local.
Exceto por um corte no braço, o engenheiro não sofreu maiores conseqüências. Se fosse realmente atacado, como disseram os jornalistas, teria sido feito em pedaços (o que de fato não ocorreu). Já os telespectadores foram sumariamente mutilados pelo jornalismo global. A ênfase dada à violência dos indígenas na cobertura do episódio mascarou a verdadeira natureza do conflito.
Para a Eletrobrás, a Globo e as vítimas do mau jornalismo em relação à remoção dos indígenas é um detalhe técnico. Os infelizes estão numa área que será alagada e, portanto, devem ser removidos. Se não saírem por bem, o Estado usará de todos os meios para ‘limpar a área’.
‘Modernização’ e ‘retrocesso’
Todavia, aqueles indígenas não são insetos. Não podem ser transportados de um lado para outro como se o fossem. Gostem ou não os jornalistas da rede Globo, os indígenas que investiram contra o engenheiro são seres humanos. São portadores de uma cultura diferente da nossa, mas nem por isso menos respeitável. Naquelas terras que serão alagadas, eles vivem desde tempos imemoriais. Lá eles vieram ao mundo, lá se casaram, lá criaram seus filhos. E lá estão enterrados seus antepassados.
O espaço que os indígenas habitam ocupa o centro de suas tradições culturais e religiosas. Portanto, tem um grande valor simbólico. Nenhum outro local, por melhor que seja, vai desempenhar o mesmo papel que aquele em que eles estão. Todo seu mundo será destruído pela construção da represa. Quer tenha ou não consciência disto, o engenheiro se tornou vítima de um choque de culturas. Para os índios, ele representa o mal a ser exorcizado.
Sob o ponto de vista jornalístico, o engenheiro é um personagem que ocupa múltiplos papéis contraditórios. Para os brasileiros, ele representa a modernização; para os índios, representa um retrocesso inominável. A rede Globo, entretanto, representou o engenheiro apenas como vítima. Aos telespectadores não foi dada a oportunidade de o verem como o viram os indígenas.
Eterno retorno
Em razão de raciocinarem apenas em termos econômicos, os jornalistas da Globo não deram a devida atenção e consideração ao sofrimento dos outros agredidos. No imaginário jornalístico tupiniquim, os índios só podem desempenhar o papel de vítimas quando sofrem calados. Quando se resignam pacificamente à destruição de sua existência cultural e física, os índios ganham relevância e dignidade. Caso esbocem qualquer reação e demonstrem que pretendem defender a dignidade de suas culturas e tradições, tornam-se automaticamente criminosos que merecem ser punidos.
Meus leitores sabem que não sou exatamente um fã de Nietzsche. Mesmo assim, a cobertura dada pela Globo ao episódio envolvendo os indígenas e o engenheiro me fizeram recordar a teoria do ‘eterno retorno’:
‘E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: `Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!´. Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: `Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!´ Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: `Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?´ pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?’ (Gaia Ciência)
Estúdios ao lado da Rocinha
Em se tratando das relações entre o Estado, mídia e os indígenas, as palavras de Nietzsche me ajudaram a compreender o episódio que ocorreu no Pará e sua cobertura jornalística. No Brasil, os padrões coloniais sempre retornam quando nós (‘brancos civilizados’) queremos algo que os índios não querem. A ‘nossa vontade’ deve prevalecer à força, nem que para isto eles tenham que ser silenciados. E, ao enfatizar a violência contra o engenheiro, a Globo realizou o inestimável serviço público de silenciar os indígenas. A guerra contra os índios, a que me referi em outro lugar, não só perdura como tem sido intensificada com a ajuda da mídia televisada.
É claro que ninguém gostaria de estar na pele daquele engenheiro. Mas a questão não é só esta. É também outra. Alguém gostaria de estar na pele daqueles indígenas? Suponhamos que um engenheiro da Eletrobrás vá até a sede da rede Globo com mapas, plantas e normas técnicas e diga:
‘Estão vendo aqui? – aponta para o mapa. Toda esta área maior que contém os estúdios da Globo no Rio de Janeiro dará lugar a um grande lago artificial. Em alguns anos será construída uma barragem daqui até aqui – aponta para o mapa e para a planta – represando este rio. Infelizmente, vocês terão que ser removidos. Ao lado da favela da Rocinha há uma área que será destinada para vocês. Tudo ficará bem.’
Qual seria a reação dos donos da Rede Globo? Certamente não seria a mesma que os jornalistas da companhia tiveram ao fazer a cobertura do conflito no Pará.
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Advogado, Osasco, SP