Triste constatação, mas, mais de um mês depois do famigerado19 de abril, é difícil pensar que um jornal, revista ou programa de TV possa ter, entre suas pautas, alguma sobre a situação de qualquer nação indígena. Os metyktire, a subetnia do grupo kayapó descoberta recentemente pela Funai na divisa do Pará com o Mato Grosso, ganharam visibilidade nos espaços da grande mídia no último fim de semana. Essa rara cobertura certamente aponta avanço no que tange dar mínima atenção à população autóctone brasileira, contudo ainda peca por indícios de um tom curioso e taxonômico, além de revelar, pela própria forma como se constrói midiaticamente, sério desconhecimento dos embates que o movimento indígena há anos vem travando. Estas vozes continuam silenciadas ou estancadas em terrários de observação – bem à maneira do olhar cientificista do século 19.
O Estado de S. Paulo de sábado (2/6) trazia estampada em sua primeira página a fotografia aérea da terra em que as 87 pessoas buscaram abrigo: trata-se da área da aldeia Kapot. Na Folha de S.Paulo, a matéria ‘Grupo de índios deixa isolamento e chega a aldeia caiapó em MT’ [disponível aqui] contava com endereço para que sejam ouvidos os cantos tradicionais do povo descoberto. Para além da informação enciclopédica, não há ali qualquer tipo de problematização do contato entre as duas culturas além da determinação do contato restrito aos indígenas com os metyktire para evitar exposição a vírus: ‘Os cerca de 500 índios da aldeia Kapot serão vacinados’, afirma a matéria. Por que não é questionada a vacinação – que também pode ser um elemento ameaçador à saúde de um povo isolado há 50 anos?
Sem qualquer pretensão antropológica, diferente do que fazia, nos idos da década de 1950, a revista O Cruzeiro, com reportagens como ‘Xavantes em Copacabana’, de Indalécio Vanderley e ‘Enfrentando os Chavantes’, da dupla Jean Manzon e David Nasser, a escolha destes jornais poderia ser a de ir além do simples conteúdo noticioso engendrado pelos valores-notícia de ‘descoberta’ e ‘atualidade’. Já que ainda faltam subsídios informativos sobre os metyktire, tentar estabelecer um conjunto de conteúdos detalhados sobre a cultura dos kaiapó, partindo de sua relação com a terra, do paradigma de trabalho adotado ou de sua natureza lingüística, por exemplo, seria o mínimo. A Folha restringe-se ao superficial estigmatizador: ‘Os índios isolados usam botoque (disco de madeira preso no lábio), aço e flecha e pintam os rostos de vermelho e preto’.
Estado ‘puro’
Não é agora, quando a internet é protagonista entre as mídias, a hora e a vez de a mídia impressa prezar por um conteúdo mais crítico e reflexivo em lugar do pontual e volátil? Este era o espaço, por exemplo, para alavancar, através de um processo metonímico de construção jornalística, a problemática ligada às garantias de demarcação e homologação dos territórios indígenas e sua relação perversa, no Congresso, com os interesses de grandes mineradoras. Mais especificamente, tentar investigar as lutas encampadas pelos povos kaiapó no sentido da demarcação de seus territórios, além de apontar que possíveis conflitos poderiam ser gerados, apesar da escolha, pela Funai, da manutenção do isolamento dos matyktire sobre estas terras.
É na televisão que o signo da negligência ganha contornos mais claros e preocupantes. O Jornal Hoje da sexta-feira (1/6) dá nota sobre a ‘descoberta’ dos metyktire; erra o nome da aldeia: metutire [ver ‘Descoberto novo grupo de índios‘].
Na noite de domingo, o Domingo Espetacular, da Rede Record, trazia reportagem bem à moda das narrativas das revistas semanais televisivas. Tentando garantir que a frivolidade da investigação não ficasse às claras, a matéria ateve-se a contar a relação histórica de Orlando Villas-Bôas e o marechal Cândido Rondon com os povos indígenas no interior do país. Da matéria: esses matyktire embrenharam-se na região justamente por desejarem fugir do contato com a cultura não-índia – uma ameaça materializada pela ação ilegal de madeireiros e garimpeiros sobre as terras tradicionalmente ocupadas.
Entretanto, os momentos últimos da reportagem, ilustrada por bucólicas imagens da região em que vive este povo, desconstroem todo o discurso pretendido quando, revestida de expertise, a fala de um entrevistado afirma que, em estado ‘puro’, aqueles sim têm o espírito do verdadeiro homem da floresta. Faltou tocar O Guarani, de Carlos Gomes, ao fundo.
Escambo informativo, visibilidade manca
Se há 500 anos era com pequenos espelhos que se enganavam os índios, garantindo que escambo fosse uma prática rentável ao incipiente processo de colonização do país, à época da comunicação generalizada e da lógica do capitalismo tardio é com capital midiático que se tenta enganar a ‘opinião pública’ com a idéia de que não há mais discursos periféricos. Caberia somente ao jornalismo feito pelos movimentos sociais ou ligado a ele desvincular seus conteúdos desse tipo coxo de conformação informativa?
Em entrevista coletiva no módulo sobre Direitos dos Povos Indígenas do Projeto Repórter do Futuro, realizado pela Oboré, a jornalista Verena Glass, da Agência Carta Maior, sublinhou a necessidade de que a questão indígena saia do âmbito do folclórico e passe a transitar entre o que diz respeito à política nacional. Que jornalista conhece a fundo a legislação que abriga o direito à posse de terras por parte desses povos, além dos que trabalham a problemática ao lado do movimento?
Para Verena, a função social do jornalismo, nesse sentido, estaria ligada, primeiro, a despir-se de preconceitos e buscar informações certeiras sobre a questão; depois, em enxergar nas populações indígenas uma condição de pouca homogeneidade não só cultural, mas também na própria unidade do movimento. ‘Não existe um João Pedro Stédile do movimento indígena’, diz Verena, afirmando que apesar da existência de notáveis como Ailton Krenak, Marcos Terena ou Davi Kopenawa, é muito difícil recolher as falas e diagnosticar nelas as lutas gerais desse segmento.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) apregoa que a melhor fonte de informação sobre os índios, por conta dessa falta de homogeneidade, são os próprios povos. Verena lembra, contudo, que as experiências diretas com os povos são bastante dificultadas pela própria barreira da língua: ‘Às vezes é muito difícil entrevistar o índio’. Se assim é, novos embates devem ser feitos caso a caso, à medida da produção jornalística. Muito mais difícil que reforçar lugares comuns, é verdade, mas certamente é uma forma capaz de possibilitar ao índio contar sua própria história – e garantir a sobrevivência de sua identidade cultural.
Quando perguntado sobre a utilidade da relação entre seu povo e jornalistas, o líder da comunidade que vive no Pico do Jaraguá, na capital paulista, Alísio Guarani, diz, num português pausado: ‘Nunca nós tivemo a oportunidade de contar nossa história do próprio índio. A gente gostaria de ter contato com jornalista’. Nessa, que ele chama de língua ‘caipira, assim’, o contato com os jornalistas é o único caminho para demonstrar o ‘outro sentimento da história’ – aquele que não se deixa desvirtuar por informações pouco ou preguiçosamente apuradas.
Nas cidades, o índio sem aura
Em ‘A perda da auréola’, Charles Baudelaire narra a história de um homem que se encontra por acaso com um amigo e constata que o outro perdeu sua auréola, símbolo de sua sacralidade, no cenário fugidio da metrópole francesa. Tal qual o flanêur baudelariano, também os povos indígenas, difusos nas multidões ou aldeados em periferias, perdem o lustro das figuras românticas – e mais: tornam-se vidas nuas, carecendo de políticas públicas em seu favor.
A ONG Repórter Brasil, voltada para o jornalismo social, publicou, em 19 de abril, um ciclo especial de reportagens sobre o tema – numa construção exemplar em contraste com a falha postura da grande mídia [ver ‘Povos reivindicam políticas; Estado esboça respostas‘].
Benedito Prezia, doutorando em Antropologia pela Universidade de São Paulo, diz que a prática da migração desses povos não é recente. Já à época do Marquês de Pombal, era o êxodo para as cidades o fator maior de marginalização indígena – destaque para a Cabanagem, revolta popular do período regencial, forjada na cena de exclusão em que índios migrantes, mestiços e escravos libertos estavam colocados nas cidades.
Hoje há, segundo Prezia, diversos paradigmas de relação entre a modernidade citadina e o estado de assentamento dos grupos indígenas: as populações resistentes/ressurgidas, que tentam reafirmar suas identidades a partir da retomada de aspectos culturais e da luta pela demarcação de terras (como os xukuru, em Pernambuco e outros povos do nordeste); as populações isoladas (como os matyktire) e as interioranas, caso das de região amazônica; e as populações que, mesmo estando em suas terras tradicionais, são abarcadas pela urbe. Estas últimas, em São Paulo, têm três representantes, todos parte da nação guarani: as aldeias Krukutu e Tenondé-Porã, na região de Parelheiros, mais a do Pico do Jaraguá.
Benedito Prezia informa que o mundo guarani mbyá, definido por esta nação como ‘a Caminhada’, tem um raio de delimitação que engloba grande parte das regiões Sul e Sudeste, terminando no Espírito Santo. Tradicionalmente, portanto, é o pólo metropolitano que está contido nas terras indígenas, apesar de os aldeados (em São Paulo, praticamente favelizados) não serem os brancos. Além daqueles, existem os que, miscigenados ou com visíveis traços mongolóides, migram à procura de emprego ou formação escolar. A maior parte é do Nordeste e sofre preconceito duas vezes: uma por serem índios, outra por serem nordestinos. Na favela Real Park, pankararus sobrevivem com dificuldade.
Impactos culturais
Apesar de existirem algumas políticas públicas voltadas para os índios aldeados em São Paulo (como os Centros de Educação e Cultura Indígena, que zelam pela educação das crianças nos moldes guaranis e iniciam projeto de formação de monitores e professores indígenas), há deficiências notáveis. A área demarcada há 10 anos para os guarani do Pico do Jaraguá tem apenas 1 hectare (outros 13 hectares estão em processo de demarcação). Alísio, do ‘andante’ povo Guarani, diz: ‘Hoje nós não temos mais aquela liberdade que antes nós tínhamos. A gente andava muito. Não temos uma área para nossas criança viver tranqüila’.
Enquanto os krukutu, em São Bernardo do Campo, vivem de recolher lixo reciclável [ver ‘Índios da Billings terão mais terras‘], a peculiar forma de apropriação da terra (e de relação mística com ela) dos guarani mbyá é negada. Ninguém alardeou fotografias aéreas das terras desses guaranis que, mesmo dentro de um parque estadual, perdem, pouco a pouco, o direito de coadunar-se com a Natureza – e têm maculados seu deus Nhanderú e suas tradições religiosas.
Nem o isolamento nem terras demarcadas significam que territórios identitários serão mantidos ou que histórias cumulativas deixarão de ser vistas como estacionárias. Contra a lógica do terrário, Alísio Guarani afirma: ‘A gente não é um museu. Não ficamos parados no tempo’.
Mesmo que haja as tais fotografias, certamente elas não fariam os impactos culturais mais amenos para nenhum dos lados. Informar com um mínimo de conseqüência talvez o fizesse.
******
Estudante de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo