Por que até agora a grande mídia não colocou seus correspondentes nos Estados Unidos para fazer amplas reportagens sobre a saúde econômico-financeira-social do grande império norte-americano, que se vê, neste momento, abalado pela derrocada do dólar nos mercados internacionais?
Estaria ele entrando em decadência para valer, quando os detentores da moeda norte-americana fogem para outros ativos em todas as partes do planeta? Teria chegado ao fim uma era de acordos monetários internacionais que tiveram suas bases de sustentação na vitória dos Estados Unidos e aliados na segunda guerra mundial, responsáveis por fixar, no pós-guerra, nova divisão internacional do trabalho? As bases de tal divisão continuam firmes em seus alicerces?
Naturalmente, as investigações jornalísticas teriam que partir do real concreto em movimento dialético, e não de mero mecanicismo manipulador. Isso, infelizmente, não se vê na grande mídia nacional. Os despachos jornalísticos se dão a partir da capital e dos grandes centros norte-americanos, especialmente Nova York, enquanto a vida norte-americana em sua dimensão maior fica relegada a segundo plano.
Os fatos humanos
Recentemente, a prefeitura de Nova York cogitou de adotar o Programa Bolsa Família, levado adiante pelo presidente Lula. Teria sido excelente oportunidade, que foi desperdiçada para mostrar o que parece ser o óbvio: se na grande metrópole, torna-se necessário esse expediente que a grande mídia taxa de populista, assistencialista, o que não imaginar nas cidades médias e pequenas dos Estados Unidos, nos grotões norte-americanos, onde as conseqüências das crises monetárias se dão de forma mais intensa, refletindo no aumento das taxas de desemprego, na oferta insuficiente de saúde, no avanço do crime organizado e desorganizado, na baixa qualidade do ensino, na carência de segurança pública etc.
A mídia norte-americana tem mostrado que os indicadores econômicos e sociais sofrem abalos. As reportagens dos correspondentes nacionais nos Estados Unidos não se realizam, para confirmar ou desmentir esses fatos. Ficam obscurecidos. Apenas, a aparência se eleva ao consciente. E a essência da saúde do colosso, por que não ir a fundo?
Buscam-se tão somente os vaivéns dos índices da bolsa de valores, o acréscimo ou descréscimo dos lucros dos acionistas, as previsões de lucro, os abalos financeiros que tomam conta dos grandes bancos, como o Citigroup, sinalizando possível crise bancária gerada pelo medo de trabalhar o crédito em uma economia cuja pujança é data pelo crédito direto ao consumidor etc. Mas, os fatos humanos, que traduzem essa problemática social, ficam ocultos nas inexistentes reportagens.
Analistas só vendem seu peixe
Parece não haver interesse em ir a fundo na realidade norte-americana, para que se possa saber, com relativa certeza, se a crise é ou não para valer, se o império está ou não comprometido. Na falta de reportagens sobre o dia-a-dia norte-americano, mesmo que em matérias domingueiras mais amplas, resta atentar-se para analistas mais ou menos independentes, algo difícil de averiguar. Afinal, os especialistas não deixam de emitir, parcialmente, seus pontos de vistas, dados os interesses, nem sempre claros, aos quais estão ligados.
Ilan Goldfanj, ex-diretor do Banco Central e atualmente corretor de ações no mercado carioca, destacou, no Globo, que a desvalorização do dólar, no momento, reflete algo claro: encontra-se em curso calote financeiro norte-americano na praça mundial. A redução dos juros nos Estados Unidos implica menores custos sobre o endividamento norte-americano, em decorrência da bancarrota imobiliária, como arma para evitar recessão. Ou seja, para salvar o mercado norte-americano, a Casa Branca joga seus problemas nas costas dos outros.
Isso aconteceu em 1972/74, quando o Banco Central norte-americano, diante da excessiva oferta de dólares no mercado mundial e da predisposição dos detentores de dólares de os trocarem por ouro, não titubeou em desvincular o dólar do ouro. Deu tremendo beiço na praça. Mutatis mutantis, ocorre a mesma coisa agora. Gisele Bündchen, resistente a fazer contratos em dólar, que o diga, preferindo o euro na sua bolsa do que aquele que se candidata a se transformar em papel pintado. Boas reportagens sobre as famílias norte-americanas dariam uma noção mais exata do fenômeno do que as meras notícias econômicas despachadas aos correspondentes pelos analistas dos bancos privados, dos quais a grande mídia passou a depender para desinformar o público, já que esses analistas só sabem vender seu próprio peixe.
A economia mecanicista
O fato claro que a grande mídia brasileira não está cuidando de esclarecer, por razões que a própria razão desconhece – ou conhece demais e por isso foge do fato que poderia levar a sua queimação – é que está chegando ao fim a capacidade norte-americana de realizar, no consumo interno, nos Estados Unidos, via endividamento público keynesiano, a produção mundial, conforme ficou estabelecida na divisão internacional do trabalho no pós-guerra.
Os norte-americanos resistiram à proposta de John Maynards Keynes, em Bretton Woods, em 1944, em favor da criação de uma moeda internacional, o bankor, que representaria fator de compensação internacional em face das instabilidades temporárias das moedas nacionais, afetadas pelas trocas cambiais, sendo estas sempre favoráveis às moedas fortes em detrimento das mais fracas. Prevaleceu a força do dólar.
A dívida pública norte-americana seria, desde então, a bombeadora geral dos déficits crescentes decorrentes da utilização, pelo poder norte-americano, da única variável econômica realmente independente sob o capitalismo, segundo Keynes: a quantidade da oferta de moeda na economia. Com uma mão, Tio Sam passaria a jogar na circulação capitalista moeda estatal, para puxar a demanda global – a partir do dinamismo das não-mercadorias, produtos bélicos e espaciais, expansão dos gastos públicos etc. – e com a outra emitiria títulos da dívida pública interna, para enxugar parte da oferta monetária, a fim de evitar enchente inflacionária. A dívida pública cresceria dialeticamente, no lugar da inflação, jogo esse que a grande mídia sempre teve dificuldade de entender, pois sua cabeça, até hoje, encontra-se na economia bi-setorial, mecanicista, do século 19.
Uma saída para o capitalismo
De uma forma ou de outra, tal keynesianismo permeou toda a ação dos países capitalistas desenvolvidos e subdesenvolvidos ao longo do século 20. O remédio keynesiano representaria solução enquanto os governos tivessem capacidade de suportar o endividamento, antes que o sistema financeiro desconfiasse de tal capacidade e, naturalmente, dificultasse a oferta de crédito, cortando-o, a partir do final dos anos de 1970.
De lá para cá, somente os Estados Unidos continuaram com fôlego financeiro incólume, graças ao seu poder bélico e espacial e seu dinamismo interno para consumir a produção mundial, via déficit orçamentário, keynesianos, enquanto o resto das economias capitalistas teve que dar brecadas econômico-financeiras. Agora, da mesma forma, a nação norte-americana, com suas finanças abaladas (déficit em contas correntes de 6% do PIB) abre também o bico, pedindo água.
Seria o fim do mundo? China, Japão e Europa, que realizam superávits comerciais na praça econômica norte-americana, sobreviveriam com seus dólares acumulados no comércio bilateral com Washington se os Estados Unidos entrassem em colapso, em decorrência da desmoralização do dólar? O que aconteceria com chineses, japoneses, árabes e europeus, abarrotados de moeda norte-americana em seus cofres, se tentassem, rapidamente, fugir deles?
Ou seja, configura-se quadro no qual o devedor, sem ter para onde ir, deixa de se preocupar, transferindo seus problemas e suas preocupações para seus credores. Estes, enfim, teriam, em vez de fugir do dólar, de buscar forma de garantir a saúde monetária do dólar, que constitui essência da sua riqueza em poupança acumulada. Teríamos, então, em vez da soberania do dólar, abalada em seus alicerces, uma cesta de moedas para substituí-lo, ou vingaria, 63 anos depois de Bretton Woods, a proposta de criação do bankor feita por Keynes, como saída para o capitalismo?
As entranhas e a decadência
Esse equilíbrio monetário internacional precário representaria a principal motivação para a grande mídia brasileira dar uma geral na saúde econômico-financeira do império norte-americano, de modo a mostrar, via reportagens abrangentes, a essência de assunto tão fundamental para o destino da humanidade. No entanto, o que se vê? Abobrinhas repetitivas, pobreza jornalística, já que as coberturas ficam na superfície.
A velha sabedoria histórica demonstra que os impérios começam a cair de dentro para fora, e não de fora para dentro, como ocorre com as grandes famílias. Por que não investigar o interior do império norte-americano, ou faltariam Joel Silveiras para o exercício dessa tarefa espetacular?
Ficaremos apenas nas previsões e expectativas construídas nos prognósticos e diagnósticos gerados nos laboratórios dos estrategistas, planejadores e economistas que trabalham com projeções previamente construídas no exterior da realidade para explicar os fatos concretos que se desenrolam em diferentes manifestações objetivas?
Não há como deixar de constatar: a grande mídia, nesse momento, foge da tarefa de investigar as entranhas do grande império em decadência.
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Jornalista, Brasília, DF