‘O tema policial dominou as manchetes de capa do O Povo na semana passada. Coube tudo, desde o estupro de uma menina de doze anos, passando pela prisão de um soldado do Exército acusado de assaltar restaurantes em Fortaleza, até a morte de uma garota atingida em meio a um tiroteio entre gangues na periferia. Estranhei que o período, nem pior nem melhor do que alguns que o antecederam imediatamente no Ceará, houvesse apresentado uma concentração tão expressiva de manchetes ligadas a episódios extraídos do triste cotidiano que nos cerca, coisas que costumamos tratar de maneira mais tranqüila. Longe de representar uma perspectiva de banalização da violência, este comportamento tradicional do jornal, conforme enxergo, resulta de uma atitude de responsabilidade, onde se mantém o compromisso de informar e, ao mesmo tempo, o faz sem esforço de transformar a notícia em algo sensacional. Já pude abordar a questão outro dia, de passagem, quando lembrei da coragem que O Povo teve alguns anos atrás ao mudar o tratamento do noticiário dito policial e, além disso, do preço que ainda hoje se vê obrigado a pagar em muitas circunstâncias. É o único entre os órgãos locais, um dos poucos no Brasil, para citar um exemplo, que não tem uma página policial. A cada uma dessas manchetes manifestava, na crítica interna, minha estranheza com a opção feita, especialmente porque naqueles dias sempre existia alternativa na edição. Ou seja, foram escolhas feitas de maneira consciente, a partir de um entendimento majoritário entre aqueles que participam do processo de definição do tema, de que se estava diante do fato mais importante da edição. Isto é que me deixava mais preocupado a cada situação detectada.
Os mesmos critérios, um outro resultado
O tema, que reconheço controverso, foi submetido à discussão com a Chefia da Redação para análise que seria trazida à coluna externa. Os diretores-executivos Arlen Medina e Carlos Ely e a editora-chefe Fátima Sudário discordam de todas as avaliações que fiz ao longo da semana, comprensão que reafirmam nas correspondências a mim endereçadas na última sexta-feira. Arlen assegura que não se mexeu uma vírgula nos critérios com os quais se costuma trabalhar para definir uma manchete quando da escolha das três que receberam análise crítica da minha parte. ‘A relevância editorial continua prevalecendo’, diz ele, negando haver qualquer orientação no sentido de ‘forçar a escolha de temas policiais ou afeitos à segurança’. É o mesmo que garante Carlos Ely, o qual vale-se de estatísticas para mostrar que inexiste qualquer ação sensacionalista por trás. ‘Um levantamento em torno do acervo à nossa disposição mostrou que apenas 36 manchetes, de um total de 120 veiculadas nos últimos quatro meses, dizem respeito a fatos policiais’. Lembrando que o conceito utilizado é largo, envolvendo ainda acidentes de trânsito como os observados no Carnaval e na Semana Santa, Ely avalia, em relação aos assuntos tratados na semana que ontem se encerrou, serem todos de grande interesse popular. Algo de que não discordo, inclusive defendendo, sempre, que seriam todos temas com espaço assegurado na primeira página. Não aquele destinado à manchete do jornal, porém.
Para ela, uma visão pessoal e reducionista
Uma terceira manifestação em defesa das manchetes que ataquei, e continuarei atacando mais adiante, é da editora-chefe Fátima Sudário, Mais enfática, até por seu maior envolvimento direto no processo de definição da manchete, ela reclama da minha visão reducionista, portanto preocupante, diz que o que tenho manifestado são sentimentos pessoais, vinculado-os a aparente preconceito e má vontade, e, na parte em que faz a defesa efetiva das escolhas, reafirma sua convicção de que o jornal optou pelo certo em todos os casos, dando visibilidade a temas caros às pessoas diante do drama que hoje aflige os brasileiros no campo da segurança pública. Em toda a manifestação dela, incomoda-me mesmo é a rejeição à minha análise, em tom destacado, por se tratar de algo pessoal. Serei eu um alienígena? Uma observação que faça perderá força por que por trás dela não há um clamor de leitores justificando-a? Na verdade, a observação me chateia menos porque, inclusive, está equivocada. Recebi sim ligações de leitores protestando, por exemplo, contra a manchete da terça-feira sobre o estupro de uma menina de 12 anos. Para aqueles que me procuraram, puro sensacionalismo. Tese da qual discordo, inclusive, preferindo tratar este caso e os outros postos na mesma análise, como erros de avaliação.
Na hora de definir, o peso foi outro
Apenas quem participa, ou já participou, do processo de finalização de uma capa de jornal, com a necessidade de pesar todos os elementos que podem levar à melhor manchete, pode mesmo ter noção do quanto é angustiante fazer uma escolha que, dia seguinte, produto pronto, entregue, não pareça capaz de agradar a todos. É compreensível, nesse sentido, a resistência do comando da Redação em aceitar discutir a visão de que naqueles dias não se ofereceu de maneira correta o que de melhor havia nas edições. Imagino que estiveram presentes à análise que levou à decisão todos os critérios que os três jornalistas fizeram constar nos textos de defesa das manchetes. Discordamos, e discordaremos, é quanto ao peso que tiveram nas escolhas, que não pode ter sido o definitivo. Da mesma estatística apresentada contra minha argumentação, me valho para reforçá-la: se houve apenas 36 manchetes policiais nos últimos quatro meses, como justificar que cinco delas estejam concentradas nos últimos sete dias? Sendo que em nenhum dos casos foi uma grande tragédia, uma grande descoberta, um grande desmonte. A maioria é de fatos que podem ser considerados episódicos dentro de um cenário de violência que se passarmos a acompanhar da forma como o fizemos naqueles dias terá de ser manchete na maioria das edições, invertando a estatística que hoje apresentamos como peça de defesa. É em cima deste sentimento que precisamos refletir sobre o que aconteceu na semana passada. Respeitando valores pessoais, também, mas sem reduzir, sem preconceito, sem má vontade e sem sensacionalismo.
As manchetes da semana
‘102 obras paradas no Ceará’, 25/04, domingo;
‘70% dos PMs fazem ‘bicos’’, 26/04, segunda-feira;
‘Garota de 12 anos é violentada’, 27/04, terça-feira;
‘Explosão com dinamite fere 14 crianças’, 28/04, quarta-feira;
‘Preso soldado do Exército que assaltava restaurantes’, 29/04, quinta-feira;
‘Garota morre em tiroteio de gangues’, 30/04, sexta-feira;
‘1º EMPREGO, O fracasso das políticas públicas’ e ‘SINDICALISMO, reforma coloca modelo em xeque’, 01/05, sábado;
Vê-se acima, como dizia no início, que foram sete dias de prevalência dos fatos policiais em manchetes na maioria esmagadora deles. Não chama atenção o destaque ao bico de 70% dos PMs, objeto de uma boa reportagem que ocupou duas páginas. É igualmente compreensível a opção pelo acidente em Itapipoca que deixou 14 crianças feridas. Preocupantes, reafirmo, são os casos de terça, quinta e sexta-feira, nos quais prevaleceram notícias policiais por critérios que não parece fácil compreender, apesar das argumentações firmes da Chefia de Redação através dos seus três representantes. É maior o desafio de noticiar a tragédia da violência nossa de cada dia quando se opta, como tem feito O Povo, por agir com responsabilidade. Não escondendo-a, não minimizando-a, não ampliando-a, não transformando-a em instrumento de estratégia editorial. É isso que justifica estarmos discutindo o forte desvio observado no período entre 25 de abril e 1º de maio.’