Triste não é ler a matéria mal intencionada sobre um show de Cauby Peixoto, aos 84 anos, no Bar Brahma, em São Paulo. Triste é não ver na imprensa matérias investigativas e venenosas sobre temas importantes que certamente dariam mais trabalho e requisitariam mais conhecimento. Na reportagem “‘Hoje falta brilho à música’, diz Cauby” (Folha de S.Paulo, 21/5), a repórter acha engraçado começar o texto com o alfinete do colete do terno que voa longe quando o cantor espirra diante de um quadro onde ele foi pintado aos 17 anos. Está mais gordo, ela revela, surpresa.
Depois, acha mais graça do boato sobre sua morte que “grudou com a força do fixador da peruca que ele usa desde os anos 1980, quando a famosa cabeleira começou a rarear”. E coloca o cantor numa situação ridícula, obrigando-o a afirmar: “Não tenho problema, não, tô na ativa”.
Insiste ainda em revelar que Cauby precisa de ajuda para andar – “escuta pouco, fala menos ainda e, quando fala, divaga”. Prefere cantar, explica a repórter, sem se dar conta de que está entrevistando um cantor. Ainda ridiculariza mais um pouquinho o entrevistado que é praticamente obrigado a dizer que “às vezes ouço minha voz e ela é perfeita. Sou muito afinado”. Em seguida, a matéria diz que ele repete pela terceira vez os discos que planeja para o final do ano, como “Cauby Sings Nat King Cole”, revelando o que julga ser um furo entre nossos artistas que tentam a vida lá fora: Ron Coby, o nome artístico adotado, não vingou por lá.
“Dualidade intrigante”
Descobrindo que alguma coisa acontece em seu coração com ponte de safena desde que começou cantar em 2004, na esquina celebrada por Caetano Veloso, da Avenida São João com Ipiranga, a repórter nos conta que vai sair o documentário Cauby – Começaria Tudo Outra Vez, de Nelson Hoineff. E que Diogo Vilela recriará os trejeitos do cantor no musical “Cauby, Cauby”, de 2006. Diogo avisa: “Ele deveria ser reconhecido como o nosso Sinatra. É o último dos românticos”. E o primeiro dos roqueiros.
Continuando o perfil do artista, a repórter diz que ele já trocou os dentes, é fã da Era do Rádio (“tece loas à longínqua Era do Rádio…”), e fã também de frango ao molho pardo que almoça com a amiga de 86 anos, Ângela Maria. Posava para revistas lutando jiu-jitsu quando começaram a duvidar de sua masculinidade. Repetiu sua entrevista ao Roda Viva: “Já fui muito promíscuo. Quando garoto, transei com porca, galinha, papagaio”.
Reproduz trechos da biografia de Rodrigo Faour, Bastidores (Record, 2001), título da música que Chico Buarque compôs para ele em 1980 (“Com muitos brilhos me vesti/ depois me pintei, me pintei”). E a repórter não esquece de observar o manual de Glória Kalil, Chic, na mesa da sala adornada por dois dragões chineses, pilastras gregas e flores de plástico.
De quem a repórter falava mesmo? De um ladrão? Um colarinho branco apanhado com mão no caixa ou com a boca na botija? De um assassino? De um personagem que ela custou a achar e teve dificuldade em entrevistar; um malfeitor, um general da ditadura, um torturador? Um personagem da Segunda Guerra dentro de uma matéria espinhosa, um nazista disfarçado em empresário que ela penou para descobrir com identidade falsa no sul do Brasil ou na Argentina?
Era um cantor, um cantor que a revista Time já chamou de “Elvis brasileiro”, e eu queria ver se repórter da Folha faria esse papel “investigativo” ao retratar o americano revirando a genitália e por isso mesmo apelidado de “Elvis, the pelvis”.
Era um cantor, gente. Um cantor de 84 anos que revela com propriedade não ter ideia do que seja o funk, e que a música está muito comercial. “Sem brilho, sem beleza.” Um cantor que atravessou décadas de música brasileira desde a era do rádio. Apenas um cantor, que foi tratado com respeito na reportagem de O Estado de S.Paulo no mesmo dia (21/5), e no documentário de Nelson Hoineff. Ao contrário da repórter da Folha, o Estadão analisa a voz do cantor, ativa, com graves atuando para dar cor, contrastando com os agudos que não desapareceram, com sua força migrando das regiões mais altas onde habitava um vibrato de respiração longa, para as médias e baixas. O Estadão analisa a dinâmica dos volumes pianíssimos contrastando com as explosões da voz do cantor octogenário que, ao contrário de outros de sua idade, não o obrigou a baixar as tonalidades originais. E de como Cauby comoveu a UTI do Hospital Santa Isabel ao cantar “Conceição”.
Diz o jornalista do Estadão: “A voz parece representar a integridade de sua alma e transmite uma dualidade intrigante entre corpo e espírito. Enquanto o primeiro vive as limitações impostas pelo tempo, o segundo pega o caminho contrário ganhando força e recursos que antes não tinha”. É um homem frágil, descreve o repórter.
Mais respeito
Sobre o CD com músicas de Nat King Cole, o Estadão diz que é um tributo de Cauby ao homem que, um dia, também se emocionou com sua voz. “Fui convidado por ele para cantarmos em Nova York. Foi uma grande noite”. Ilustra com uma foto dos dois juntos, além de outra com Ângela Maria e uma terceira com os irmãos do músico, ambos músicos, Araken e Moacir. Ao contrário da
Folha, diz que sua memória está em grande forma.
Não omite a sexualidade de Cauby ao descrever o documentário de Hoineff: “Cauby diz que logo cedo, quando garoto, descobriu que o amor entre homens era perfeito, como o amor entre um homem e uma mulher. ‘Eu era um garoto quando ia para o morro transar com os veados. Eu também andava com eles. Transar (assim) era uma coisa natural. Depois eu comecei a ter namoradas’”. Vistas assim, as duas reportagens publicadas no mesmo dia parecem focar pessoas diferentes.
Como as grandes marcas de carros e brinquedos, os jornais deveriam fazer recall de matérias com defeito que podem causar grandes estragos. E causar reações como a do leitor Fabio Cesar Alves, professor de Literatura da USP, que enviou à Folha uma mensagem, dada no “Painel do Leitor” do jornal no dia seguinte (22/5) à publicação da matéria maldosa que o professor acusou de ser “permeada de ironia grosseira”. “Por tudo o que representa para a música brasileira, Cauby merece mais respeito”, afirmou – com razão.
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Norma Couri é jornalista