A história da literatura ocidental, alicerçada em rígida hierarquização e homogeneização, canonizou um rol de autores predominantemente formado por homens brancos europeus. Tal configuração somente será abalada pelos movimentos multiculturais que tiveram início na década de 1960, abrindo espaço para os grupos marginalizados e minoritários, até então excluídos do diálogo cultural.
Aproveitando o espaço aberto pelos estudos culturais e pós-coloniais, desde o final do século 20 a literatura afro-brasileira vem ganhando novos autores e leitores, graças aos esforços de escritores, pesquisadores e leitores, que buscam forças contra-hegemônicas de resistência e luta.
Com Africanta: ser negro, o poeta capixaba Hudson Ribeiro idealiza uma “Mãe África” como forma de se contrapor ao mito da democracia racial difundido pelo pensamento hegemônico brasileiro. Insere-se, assim, numa tradição literária afro-brasileira ainda em formação, composta por autores preocupados com marcar, em suas obras, a afirmação cultural da condição negra na realidade brasileira. Desse modo, busca o seu lugar no rol de poetas que se dedicam à recuperação da linguagens afro e do seu universo simbólico. Como um gesto de legítima defesa, ele faz questão de se declarar negro e afirmar em seu texto os valores inerentes à essa condição. Exemplar é o poema “Linhagem sagrada”:
Negros forjados em ébano
Somos nós entrelaçados
Com a nossa linhagem sagrada
Os nossos nomes usurpados
Não nos tirou as raízes
Em nós habitam soberanos
Reis e rainhas guerreiros
Das mais destemidas tribos
Somos nobres de berço vetusto
Das terras fartas de leões e leopardos
Onde os baobás bailam serenados
Emoldurando a paisagem
Como a declamar
A beleza da nossa raça
Estampada em nossa pele
Vozes de inúmeros povos
Clamam em nossas veias
E nos preservam solícitas
Valorizando nossa estirpe
Somos nós e além de nós
Pés religados às origens
Cabeças atentas às frestas
Do tempo
Para sacramentar as nossas matrizes
Um amálgama de teoria, poesia e ficção
A nostalgia da ancestralidade africana e a tentativa de exaltação mitificadora da África atende a uma demanda por mais esforços pelo reconhecimento de sua possível especificidade literária e pela reivindicação de mais espaços para a divulgação e legitimação de autores e textos que muitas vezes são preteridos por causa da hegemonia de uma perspectiva eurocêntrica e racista. Sonhar com a África seria sua utopia, pois no Brasil que defende o padrão “cânone ocidental” não haveria espaço para o “filho da África” sonhar:
Quem é filho da mãe África
Sabe na cor negra da pele
A enorme dor da trapaça
De trabalhar duro de graça
De sol a sol e de lua a lua
E mesmo com a mudança dos tempos
Para nós a luta contra a escravidão continua
Agora ainda mais necessária e renhida
Em suma, através do reconhecimento e revalorização da herança cultural africana, Africanta contrapõe-se ao discurso canônico, que se pretende universal através do apagamento das diferenças. Nesse sentido, recomenda-se sua inclusão na bibliografia dos cursos de cultura afro-brasileira, atendendo à Lei 11.645/08, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas do país, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio.
Aos leitores que negam a existência de uma literatura afro-brasileira e apegam-se à defesa do “universal”, vale lembrar que a trajetória do polígrafo Hudson Ribeiro não permite que ele seja rotulado por força do assunto que elegeu para Africanta. Recusando toda rigidez programática, o escritor, que também é professor de Filosofia, tem oferecido ao público um amálgama de teoria, poesia e ficção.
A herança africana na literatura brasileira
O primeiro livro do autor, Ideias com pernas (Flor&Cultura, 2004), escrito em coautoria com Vitor Cei, reúne ensaios filosóficos sobre pensamento grego, telenovelas, futebol e sexualidade, dentre outros temas. Após um hiato de quase uma década, veio Lucidez Renitente (Multifoco, 2013), coletânea de estórias e memórias marcadas por licenciosidade poética, coloquialismo, espontaneidade, brevidade, urbanidade, força crítica do humor, poetização do relato cotidiano, anotação do momento político, libertação das repressões políticas e morais. Desditando, o escritor persegue um estilo próprio – estilo cunhado em seu primeiro e mais importante livro, Além da margem: desditando, que lamentavelmente permanece inédito.
Antecedendo Africanta, temos Cem palavras (Amazon, 2015), reunião de microcontos sobre Oberdan, Dorotheia, Leocádia, Tonico, Nonô, Micaela, Zeca, Jacira, Zenildo, Marimar, Eugenio, Zulmira, Jonildo, Agostinho, Augusto, Edina, Betinho, Walquíria, Roberto, Eleonora, Tina, Antoniel, Olinda e W., personagens que encenam a vida, transmutando-a em obra literária.
Africanta, assim como as obras anteriores, questiona os costumes e crenças dominantes, transgredindo os valores mais prezados pelas forças conservadoras. Por conseguinte, suscita a necessidade de elaborar o passado e criticar o presente prejudicado, mantendo a fidelidade às utopias ainda não realizadas pelos negros brasileiros. Há, pois, na poesia do autor capixaba uma perspectiva crítica que não pode ser ignorada e, em sua esteira, um potencial reflexivo propício à construção de operadores teóricos com eficácia suficiente para ampliar a reflexão crítica sobre a herança africana na literatura brasileira.
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Vitor Cei é professor e doutor em Estudos Literários