Santos é bonita, agradável de se viver – tanto que figura entre as de melhor qualidade de vida do país –, mas como toda cidade grande tem problemas graves que incomodam e às vezes até envergonham a população. Problemas que, de tão sérios, são escamoteados, maquiados ou, pior ainda, subestimados pelos poderes públicos e por uma imprensa acomodada, quando não mancomunada, com as forças influentes da comunidade. Exemplo gritante desta omissão é a degradante situação daquele que ainda é o maior porto da América Latina, esmiuçada em longa reportagem pelo repórter Roberto Cabrini, no programa Domingo Espetacular da TV no último domingo (16/7).
Da luta diária dos estivadores por trabalho às condições precárias às quais são expostos nas operações de carga e descarga dos navios, sem equipamento adequado e um mínimo de segurança, passando pela não menos sofrida rotina dos caminhoneiros, feita de estressantes viagens e esperas ao longo do porto, a reportagem mostrou, com riqueza de detalhes, a outra face da moeda que o noticiário frio dos números esconde, ou seja, o regime despótico e sub-humano que persiste na atividade portuária. Regime baseado num método primitivo e humilhante de seleção de mão-de-obra, cujas normas arbitrárias impostas ao arrepio da legislação trabalhista sobrevivem à própria privatização do porto que, entre outras coisas, prometia acabar com o secular regime de exploração da mão-de-obra da velha categoria dos estivadores.
A preferida de aposentados e marajás
Famosa por seus jardins majestosos, pelos atrativos da praia e estilo de vida descontraído, além de ser o berço do Santos de Pelé, a cidade está longe de corresponder à imagem progressista e edulcorada pretendida pela propaganda oficial e ratificada pela cobertura superficial de uma imprensa monopolizada pelo grupo A Tribuna, que há muito tempo abdicou de fazer um jornalismo de qualidade. Como a lua, que por trás do brilho radiante esconde uma face obscura e nada atraente, Santos – como as demais cidades da Baixada – ainda se ressente da retração da atividade econômica na região, na esteira do natural enxugamento decorrente do processo de privatização do porto e do pólo industrial de Cubatão, que obrigou boa parte da mão-de-obra mais qualificada a migrar para a capital. Um esvaziamento que o agravamento dos problemas sociais, aliado aos problemas crônicos de política urbana e infraestrutura, resultou num quadro marcado pelo contraste entre a opulência e privilégios da minoria e o malabarismo pela sobrevivência de pessoas marginalizadas pela sociedade e que têm no limbo dos armazéns e vielas do cais do porto o seu retrato mais pungente.
Percorrendo o labirinto de terminais e bairros depauperados e semi-abandonados, em que a prostituição, o consumo e tráfico de drogas campeiam abertamente, Cabrini encontrou farto material para ilustrar o total abandono e as condições sub-humanas que compõem a triste realidade de um número surpreendentemente grande de pessoas. Trabalhadores braçais que não sabem se voltarão para casa, caminhoneiros que viram dia e noite nas estradas ou em filas quilométricas na caótica logística portuária e a escória sem perspectiva, que vive à beira da marginalidade e cujas ambições se resumem em ter o que comer e um abrigo qualquer para largar as tralhas e o corpo alquebrado. Tudo isso a poucos quilômetros da charmosa orla da praia em que santistas e forasteiros curtem o astral da cidade de melhor qualidade de vida do Brasil e, por isso mesmo, a preferida dos aposentados e marajás da previdência social.
Um possível super-vírus
Embora chocante e deprimente, o teor da longa reportagem exibida pela Record apenas confirma uma situação de abandono e negligência que remonta aos primórdios da atividade portuária, agravada na última década em função da política de compadrio e clientelismo das recentes administrações municipais. Omissão compactuada por uma imprensa regional não menos comprometida e mercantilista, cujo virtual monopólio exercido pelo grupo A Tribuna não só se mantém alheio às questões mais polêmicas, como deixa de cobrar as devidas providências por parte dos órgãos públicos. E isso que a sede do grupo está encravada praticamente no coração da área portuária, ou seja, precisaria ser cego para não ver a degradação de um setor que a prefeitura tenta maquiar, mediante medidas paliativas, como o projeto de revitalização do centro histórico.
Projeto que ignora a vergonhosa situação de uma verdadeira zona de exclusão social que a reportagem de Roberto Cabrini expôs em toda sua dramaticidade, mostrando a humilhante rotina dos estivadores pelo pão de cada dia, o drama dos desvalidos que só encontram abrigo nos terrenos e galpões abandonados das imediações do cais, em meio ao consumo de drogas e bebidas alcoólicas de que não escapam nem as crianças e a prostituição que grassa indiferentemente ao recrudescimento dos casos de Aids, cuja incidência em Santos quadruplicou nos últimos anos, segundo a reportagem.
Aliás, não só quadruplicou como acabou resultando no surgimento de uma cepa de vírus resistente ao tratamento convencional, que está sendo estudado por especialistas, mas desde já é motivo de grande preocupação, diante do risco de não só aumentar os índices de mortalidade como até mesmo ampliar o seu poder de contágio. De fato, como duvidar que o intercâmbio sexual entre pessoas com o organismo normalmente debilitado por outras enfermidades, como sífilis e doenças venéreas, resulte num possível super-vírus capaz de se propagar pela saliva, ou até mesmo ar, a exemplo da mutação agressiva do vírus da gripe?
Ex-terminal permanece ocioso
Exagero? A julgar pelo cenário dantesco exibido em pleno horário nobre e que chocou mesmo os santistas mais antenados, nem tanto. Mesmo porque boa parte das mulheres que se prostituem na noite santista, principalmente as mais jovens, finge levar uma vida normal em bairros da periferia, onde acaba disseminando a Aids inadvertidamente a parceiros que nem desconfiam do risco que correm. O que torna ainda mais injustificável a falta de um maior controle e programas de orientação e apoio por parte da secretaria de Saúde e órgãos competentes, como foi feito com sucesso em administrações passadas, tirando Santos do topo do ranking de infectados pelo HIV no país. Posição indesejável que volta a ocupar agora, segundo a reportagem, em função, sobretudo, do tenebroso quadro da zona portuária.
Mas descaso, desinformação e desrespeito não chegam a ser novidade para quem mora no litoral santista, por conta da funesta combinação entre administrações deficientes e jornalismo omisso, que se traduz não só em aberrações como as retratadas na tal reportagem descolada nas barbas da imprensa local, como em anomalias que a população, no mais das vezes, releva ou nem se dá conta. Nem falo do anacrônico sistema de balsas entre Santos e Guarujá, que nesses últimos dias anda à beira do colapso devido à interdição de dois dos três atracadouros avariados por um navio que desgarrou do porto, mas de verdadeiras transgressões que vão sendo legitimadas à sombra e/ou à revelia da lei, como, por exemplo, a revogação pró-forma da proibição à construção de espigões na Ponta da Praia. Os quais, como se temia, devem estender o paredão de concreto que cobre a orla marítima até o movimentado ponto de travessia das balsas e adjacências.
Edificações que, aliás, se afiguram como uma autêntica roubada para os futuros moradores destes prédios que transformaram a Ponta da Praia num canteiro de obras, tanto pelo trânsito pesado de caminhões que circulam por ali em função do porto, como pelo próprio cheiro pestilento que costuma pairar na região, emanado do mercado de peixes e das nuvens de poeira provenientes das operações de descarga de soja nos imensos graneleiros que aportam naquele trecho. Qualidade de vida? Trânsito, poeira, fedor, com o horror do porto ali pertinho, pois sim…
Só se for para A Tribuna, cuja reportagem circula em meio a esse cenário diariamente e não vê nada de anormal. Nem no tal mercado de peixes, que a turma da TV gosta de mostrar, com seu pescado mal-acondicionado, exposto em encardidas caixas de isopor dispostas pelos acanhados corredores, em meio a moscas e o odor que se sente a léguas e para cuja falta de higiene e afronta à legislação sanitária a reportagem não está nem aí. Como não está nem aí o poder executivo, que permite que uma fieira de boxes mambembes permaneça atravancando um dos maiores gargalos de trânsito da cidade, na confluência da saída das balsas com a avenida portuária, enquanto o amplo terreno do ex-terminal pesqueiro, onde um novo mercado poderia ser construído, permanece ocioso, entregue aos urubus.
O véu foi descoberto. Resta esperar que autoridades, imprensa e população não continuem de braços cruzados.
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Jornalista, Santos, SP