Antes de mais nada, um par de esclarecimentos: nada tenho contra a propaganda brasileira, para meu gosto e experiência, como ex-colunista do setor, uma das mais criativas do mundo. Tampouco, veterano no ofício de escrever e traduzir, armo meus textos amarrado a férreas e vetustas regras gramaticais, pois acredito no dinamismo natural da língua, sempre pronta a evoluir internamente, absorver influências externas, filtrar, inovar, enfim, criar e recriar-se todos os dias, preservando porém, em seus diferentes níveis de expressão, sua beleza formal, suas fontes semânticas e sutilezas sintáticas.
O que não dá mais para aguentar calado, e muito menos conformado, é o crescente desrespeito e desamor pelo idioma, fato refletido sobretudo na propaganda e, com toda honestidade, também no jornalismo. Embora pessimista quanto à eficácia de protestos nessa linha, pois a tendência é a piora desse quadro já lamentável, faço aqui mais um registro, dosado de certa perplexidade e indignação.
De Renato Aragão a Costinha
Em anúncio de página inteira no caderno de ‘Economia’ do Estado de S.Paulo de segunda-feira (30/3), a prestigiosa agência Fischer América, há vinte e poucos anos fundada, ampliada e dirigida com tino e garra pelo publicitário Eduardo Fischer, informa o mercado da fusão com outra agência, menor, a Fala! Até aí, nenhuma novidade: trata-se de, na feroz batalha do mercado por novos clientes, exibir maior força comercial diante da concorrência.
O problema, no entanto, está na escolha da linguagem do tal anúncio – misturando, no maior descaro e falta de bom gosto, os dois idiomas: o nosso e o inglês americano. De novo, nenhum ranço de chauvinismo linguístico, nada contra línguas estrangeiras cuja entrada no país é inevitável, até certo ponto saudável, mas é preciso, nesse processo delicado e complexo, agir com cautela, bom senso e alguma perícia na manipulação dessa mistura. Não é o caso de boa parte da propaganda brasileira e particularmente do anúncio da Fischer.
O título do anúncio já incomoda: ‘Fast Forward; uma nova maneira de pensar e de agir’. Aqui, só parodiando aquele bordão do personagem do humorista Renato Aragão, o Didi: ‘Cuma?’ O primeiro parágrafo afirma, com tremenda cara de pau, que ‘o mundo está em rewind?’ ‘Re’ o quê?
No miolo do texto, apenas corretinho, nenhum brilho de estilo, mas longo demais para os fugazes padrões de leitura dos dias de hoje, encontramos um desses neologismos patéticos, perólas como ‘os consumidores estão sendo positivados’. Positivados? Aqui me vem à lembrança outro grande comediante, o Costinha, que ao ouvir alguma besteira alheia, exclamava, no mais carioca dos sotaques: ‘Essssstás brincando!’
O mais puro vernáculo
Volta também, mais adiante, o gasto know-how e surge um termo de safra mais recente, coisa fina, expertises. Tudo isso, diz o anúncio no último parágrafo, de forma triunfal, resumindo todas as vantagens oferecidas aos clientes pela união das agências: ‘É pensar na frente, fast forward’.
Bem, em sua própria defesa, dirão os publicitários, essa é a linguagem do seu ramo, agora com as oportunas e generosas contribuições da informática. Podem até alegar, e nisso também têm razão, que os coleguinhas jornalistas não mostram melhor material ao mercado, pois os textos de jornais e revistas estão contaminados, além dos clichês e lugares comuns de sempre, com palavras de origem estrangeira.
O conflito está em que tanto publicitários quanto jornalistas parecem ignorar que o produto de sua criação, anúncios e matérias, se destina a um público amplo e heterogêneo. Assim, é até ofensivo escrever, para um leitor desconhecido, bobagens como essa, a do tal rewind. Há muita gente por aí – os coroas, como diz João Ubaldo Ribeiro – que resistem, com horror, aos prodígios da informática e portanto não conhecem os inglesismos da moda.
O pior de tudo isso é que tais abusos nem mesmo trazem um sinal gráfico – negrito, grifo, aspas – indicando sua origem externa. Entram no texto, exigidos por manuais de redação com normas cômicas, para não dizer grotescas, como se fossem vernáculo puro, invenções criativas de cabeças mais jovens, up to date (epa!).
Os dois jornalões paulistanos, por exemplo, há tempos colocam na primeira página fotos com legendas do tipo ‘Maluf, sentado em seu escritório, olha para o teto’. Ou ‘homem palestino passa diante de muro com inscrição anti-Israel’. É preciso mesmo explicar, de forma tão infantilóide, o que está claro na foto? Sou do tempo em que a legenda devia acrescentar uma informação extra ao texto, jamais privar o leitor de sua própria leitura visual da ilustração.
Volta aos clássicos
Reitero o dito: cético, não tenho a menor pretensão e muito menos esperança em melhorar esse quadro, não dispondo, como é o caso, da mais mínima vocação para ombusdman, função que Carlos Eduardo Lins e Silva exerce de forma competente na Folha de S.Paulo, às vezes com um ligeiro e compreensível toque estóico, resignado, em suas observações. Sabe ele, dono de texto elegante, que o problema, se tiver solução, ainda vai persistir por longo tempo.
Só me atreveria a sugerir que as agências de propaganda cuidassem melhor de seus textos, sobretudo os mais longos e de maior importância para o negócio. Paguem, e bem, a um bom e experiente revisor/preparador e aconselhem seus jovens criativos a ler os clássicos da língua.
Ou pelo menos os já clássicos do nosso jornalismo dos últimos trinta anos, gente do calibre de Sérgio Augusto, Roberto Pompeu de Toledo, Carlos Brickmann, Moacir Japiassu, Carlos Heitor Cony, Luis Fernando Verissimo, Flávio Pinheiro, Washington Novaes, Zuenir Ventura, Rodolfo Konder, Luiz Weis, Humberto Werneck, Rolf Kuntz, Alberto Dines, Arnaldo Jabor, Clóvis Rossi, Josué Machado, José Roberto Guzzo.
Com eles, a propósito, estou sempre, modestamente, 47 anos depois, reaprendendo a pensar e a escrever. Mas, sobretudo, a continuar nutrindo amor e respeito pela nossa deslumbrante língua portuguesa, tão maltratada, poor dear!
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Jornalista e escritor, ex-correspondente de Veja no México e Portugal