Em tempos do politicamente correto, debochar de determinados grupos ou situações delicadas pode causar polêmica, gerar processos e até arruinar a carreira de humoristas que se utilizam de episódios do cotidiano para criar piadas. A “invasão” do funeral da cantora Amy Winehouse pelos humoristas do Pânico na TV, por exemplo, foi uma “escolha” que dividiu opiniões. Para uns tratava-se de mais uma peripécia dos personagens do programa; para outros, foi uma falta de respeito sem precedentes. Já os humoristas Danilo Gentili e Rafinha Bastos, do CQC, costumam protagonizar histórias que provocam reações inflamadas. Gentili foi rechaçado quando associou a imagem do gorila King Kong ao estilo de vida de jogadores de futebol. Já Bastos não teve a mesma “sorte”: além de alvo de críticas, passou a ser investigado por apologia ao crime depois de ter feito piadas sobre estupro durante um show de comédia.
“O gosto pelo grotesco sempre existiu na cultura ocidental e há um segmento da sociedade que se diverte com situações constrangedoras”, diz a antropóloga Zilda Knoploch, CEO da Enfoque Pesquisa de Marketing (SP). “Podemos dizer que as cenas são um reflexo do inconsciente coletivo e, por isso, fazem sucesso. A audiência é prova de que o público se identifica com a proposta e a mensagem destes programas. Hoje, mais do que nunca, há opções e o controle remoto é poderoso”, afirma ela, que é especialista em pesquisa de mercado.
Para o humorista Chico Anysio, o humor não tem limites. “Quem impõe o limite é o humorista, de acordo com a sua moral e o seu caráter. A vida inteira fiz personagens judeus, negros e gays. Sempre trabalhei com todos esses assuntos e não tive problema com ninguém porque o importante é a forma como você os aborda. Tem que ter respeito”, diz Chico. “Fiz vários gays e não era um trabalho discriminativo.”
“A novela é uma válvula de escape”
Humilhar, brincar com assuntos sérios, fazer as pessoas passarem por condições desumanas e até mesmo se machucarem são alguns dos artifícios. Mas a boa audiência não significa aprovação das pessoas para tais atitudes, segundo o psicólogo Jacob Goldberg, de São Paulo. “A exploração do sofrimento alheio causa a mobilização de sentimentos sadomasoquistas. O fato desperta atenção e curiosidade. O humor covarde é um apelo aos instintos mais primitivos de perversão. Fazer rir da caricatura da mulher, do homossexual, do judeu e do pobre é fácil. Difícil seria a `pegadinha´ com banqueiros e militares”, diz.
Lembrar-se de vilãs sarcásticas como Odete Roitman (Vale Tudo) ou Nazaré Tedesco (Senhora do Destino) é muito mais fácil do que de outra personagem das mesmas novelas globais. “O fascínio pela maldade, pelo sofrimento e pela violência funciona para algumas pessoas como uma descarga de adrenalina e é isso que faz a bilheteria de filmes de ação ser lucrativa. Estes programas apenas contêm uma fração deste mesmo conteúdo”, diz a antropóloga Zilda.
Há, ainda, outro lado nesta questão. As novelas gostam da luta de classes, os pobres contra os ricos. “E os maus sempre são punidos no final. Proporciona um prazer aos que se identificam com os personagens humilhados. A novela é uma válvula de escape para quem quer ver a justiça sendo feita. Funciona como um alívio, um desfecho desejado”, diz a antropóloga.
Brincadeira de mau gosto
O poder didático da televisão é inegável. Capta recursos volumosos para ações sociais, faz ídolos e pode destruí-los. “As famílias devem filtrar o acesso de menores de idade a este tipo de programação até que tenham discernimento e maturidade para perceber que não é um modelo a ser seguido”, diz Zilda Knoploch.
Para o psicólogo Jacob Golberg, crueldade é educar crianças para servirem a padrões desumanos de comportamento. “Pesquisas já comprovaram que crianças negras, pobres, obesas têm complexo de inferioridade exatamente por serem vítimas desta cultura avacalhada, que, indiretamente, privilegia os modelos de dominação, rica, branca e arrogante. Este humor fascista não coincide com os direitos humanos de uma sociedade psicologicamente madura.”
A dupla Daniel Zukerman e André Machado, do Pânico na TV, enganou uma das agências de notícias mais respeitadas do mundo, a Reuters, ao se passar por assessores de Amy Winehouse no enterro da cantora. A repercussão na internet foi ruim. Fãs acharam que a invasão da cerimônia foi desrespeitosa. Duas semanas depois, o Pânico apresentava a façanha, que foi ao ar em um formato diferente das invasões habituais, quando exaltam a habilidade do humorista em driblar esquemas de segurança. Cenas de paparazzi metralhando seus flashes no rosto de Amy e uma demonstração de respeito às tradições judaicas foram exibidas, entremeadas por repetidas justificativas de que a matéria era uma homenagem à cantora.
“Está na cara que pegou mal. Foi uma atitude juvenil de querer entrar em uma festa que não foi convidado. O famoso bicão profissional. É engraçado desfilar na SPFW como se fosse modelo, sem ofender ninguém. Mas, dessa vez, acho que perderam a mão”, avalia Tony Góes, colunista e crítico de televisão do jornal Folha de S.Paulo. Para ele, há um limite para tudo. “Acho que os produtores tiveram mais retorno negativo do que positivo. Duvido que a família Winehouse não tenha tido conhecimento do fato. Ao mesmo tempo em que sofriam, passaram por essa brincadeira de mau gosto. E o pior: não teve graça. Eles deveriam ter arquivado as imagens”, diz Tony Góes, que escreveu sobre o assunto. O crítico do UOL Mauricio Stycer também comentou o programa em seu blog. Segundo ele, a invasão do funeral ganhou tratamento especial na edição, no esforço de diminuir o impacto negativo. A dúvida que ficou, então, é se parte da gravação ocorreu antes ou depois do funeral (com colaboração de Bárbara Stefanelli).
[Procurada pela reportagem do UOL, a assessoria de imprensa da Rede TV! informou que a equipe do programa Pânico na TV não daria entrevista sobre o assunto. O UOL também tentou falar com o humorista Daniel Zukermann, mas até o fechamento dessa reportagem não obteve resposta de sua assessoria de imprensa pessoal.]
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[Da Redação do UOL]