Muita gente tem atribuído o comportamento e idéias de integrantes da Igreja Católica a um resquício da mentalidade presente na instituição durante a Idade Média. Foi assim no episódio em que o arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, anunciou a excomunhão latae sententiae (automática) dos envolvidos no aborto de uma menina de nove anos em Pernambuco, brutalmente estuprada pelo padrasto. A posição do prelado e da Igreja que ele representava foi taxada como ‘medieval’. Puro preconceito. Não contra o religioso, mas contra uma fase da história cujo legado até hoje usufruímos, mas pouco conhecemos.
Não vou discutir aqui o mérito teológico, moral ou religioso das opiniões do arcebispo, mas ouso defender quem não pode contra-argumentar: a própria Idade Média. O conceito de que a era medieval (476 d.C. até 1453) foi um ciclo de trevas, em oposição ao Renascimento e à Antiguidade, surgiu no século 19 forjado pelos liberais, que não hesitaram em acusar esse período histórico de ter interrompido o progresso e a cultura da humanidade, que seriam retomados apenas no século 16. Mas esse preconceito felizmente está perdendo força, apesar das declarações simplistas que, por vezes, surgem, como nesses dias de apaixonados debates sobre a doutrina da Igreja.
Força unificadora
É claro que, como todo período histórico, a era medieval também tem contas a ajustar. Talvez a mais famosa delas seja a Inquisição, em que milhares de pessoas foram mortas por professarem idéias e práticas religiosas contrárias às da Igreja Católica e seus aliados, embora muitas vezes à revelia da própria Igreja.
Mas esse débito é comum a todos os ciclos da História. Os arautos da Antiga certamente não devem se orgulhar da violência generalizada e brutal contra os grupos oprimidos pelos impérios da época e da escravidão; a Moderna, período em que o Brasil foi ‘descoberto’, assistiu ao genocídio de povos americanos, africanos e asiáticos, submetidos à sanha colonialista dos europeus; a Contemporânea, esta em que estamos vivendo, ficará para sempre marcada pelo nazi-fascismo, pelos regimes totalitários comunistas, pelo massacre de grupos étnicos e pelos grandes conflitos bélicos que mataram milhões de seres humanos.
Mas voltemos à nossa Idade Média, o alvo principal das críticas dos ‘modernistas’. Foi precisamente nesse período que o avanço do cristianismo funcionou como força unificadora da Europa, um continente admirado pelo seu patrimônio cultural e humanístico e que tem sólidas raízes cristãs.
Berço do Renascimento
Os avanços conquistados nesse período de quase mil anos foram imensos. Para citar apenas alguns dos mais importantes, temos a criação das universidades, possibilitando a difusão do conhecimento científico; a filosofia tomista (que bebeu nas águas do clássico Aristóteles); a arquitetura gótica; o relógio mecânico; a ótica; o avanço e a diversificação da gastronomia… A lista é enorme.
Os historiadores russos Biriukovitch e Levitski definiram a Idade Média como ‘um período relevante, pleno de acontecimentos, que viu aparecer novas formas econômicas, sociais e políticas do desenvolvimento da sociedade’. E arrematam: ‘Durante esse período histórico, o desenvolvimento da cultura material e espiritual da humanidade progrediu consideravelmente em relação aos períodos precedentes da história.’
Ser retrógrado é, isto sim, não reconhecer a Idade Média como herdeira da Antiguidade e berço do Renascimento, em outra perspectiva, do mundo ocidental como o conhecemos hoje. Se há um culpado nessa história, não é a Idade Média.
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Jornalista, editor de ‘Mundo’ e ‘Brasil’ de A Gazeta, Vitória, ES