‘Aprende – lê nos olhos,
lê nos olhos – aprende
a ler jornais, aprende:
a verdade pensa
com tua cabeça’.
Bertolt Brecht
Escrevo depois de ler um artigo do professor Gilson Caroni Filho na Carta Maior. Ele comenta os constantes ataques da grande imprensa – em capital e audiência – ao presidente Lula. Diz o professor que o grande derrotado nas eleições de 2006 foi o ‘Partido da Mídia’, que, por isso, ‘quer desqualificar o presidente e de quebra seus eleitores, de qualquer modo.’
Não há dúvida que a bola da vez é o chamado ‘caos aéreo’. Expressão cunhada pela mídia, tornou-se explicação para os dois maiores acidentes aéreos da história do país, além de fincar-se como uma bandeira para movimentos como ‘Cansei’ e o ‘Fora Lula’ – que na verdade se tratam do mesmo absurdo, em sua gênesis.
Paulo Henrique Amorim, jornalista que costuma usar o termo ‘mídia golpista’ para o que eu chamo de mídia grande, em seu blog, o ‘Conversa Fiada’, dá alguns significados para o verbete ‘causaéreo’. Diz ele: ‘Antônimo de ‘o maravilhoso governo de Fernando Henrique Cardoso’, o ‘causáereo’ engloba tudo o que aconteça de errado na terra e no ar: nevoeiro, chuva torrencial, overbooking, privada de aeroporto entupida, Miriam Leitão perder o vôo, justificativa para manter a Miriam Leitão empregada – sobre o que mais ela tem a falar? –, motim de controladores(…)’ (há mais significados na página, que merece ser lida, sempre).
Salada completa
Para completar minhas leituras do dia, cheguei ao trabalho e fui ler O Globo (terça, 7/8), o maior jornal do estado do Rio de Janeiro. O segundo maior, em tiragem, no país. O jornal que pertence ao grupo que é dono da maior rede de televisão brasileira, além de uma editora, produtora de cinema, rádios e que recebe 75% de todo – eu disse todo – o dinheiro investido em publicidade no Brasil.
Chamou a atenção, na página de opinião do referido jornal, um artigo intitulado ‘Ideologia, eu quero uma’. Gosto bastante de Cazuza e me irrita profundamente como a mídia pátria se apropria de sua poesia de forma vazia e descontextualizada – vide o filme, da Globo Filmes. Em seguida, ao ler o nome da autora me surpreendi: Christiane Torloni. Tive medo. Então lembrei que Christiane participou da minissérie Amazônia – de Galvez a Chico Mendes – aquela que conta uma história mentirosa sobre o Acre, território que foi comprado pelo Brasil da Bolívia, em um tempo não muito distante, quando ainda se sucediam governos ditatoriais e serviçais ao grande capital naquele país (fico tentada a perder o fio da meada, por conta do carinho que tenho pelo país em que morei por dois anos e onde muito aprendi sobre exploração e América Latina). O fato é que lembrei que a atriz, juntamente com alguns colegas, fundou um movimento que, segundo ela própria, ‘reúne meio milhão de indignados’ com a destruição da floresta amazônica. A criação do movimento foi bastante noticiada na mídia. Misteriosamente, depois do fim da minissérie, sumiu dos jornais também.
Leio o tal artigo e, como esperava, o tema central é a questão amazônica. Fico até satisfeita que o assunto volte à tona, pois é um tema que julgo relevante. Já no final do artigo, Christiane, em um discurso que tenta ser emocionado, fala de ‘indignação’, de ‘ideal’ e ‘patriotismo’, explicando que são estes os sentimentos que os motivaram a fundar o movimento. Eis que chego ao último parágrafo. A atriz o abre falando de ‘mensalões’, ‘Gols’, ‘TAMs’. Nesse momento, lembrei do Gilson Caroni e o que havia lido pela manhã.
Em um único parágrafo, Christiane faz uma salada com tudo que se possa imaginar que foi chamado de crise neste país, nos últimos tempos. Cita Cazuza, cita a Constituição e termina falando de regalias dos parlamentares. Para, então, concluir em plena harmonia com a empresa que paga seu salário. Eis que surge um ‘PS’ direcionado ao presidente. Diz que ‘vaias são um gesto de indignação’ e que esta palavra rima com ‘demissão, exoneração e até cassação’. Fiquei me perguntando de onde saiu aquele ‘PS’. Algo absolutamente perdido, sem razão e sem qualquer conexão com o restante do texto.
Imparcialidade não existe
Há apenas uma explicação para a nota de Christiane. É o ‘Partido da Mídia’ e sua epopéia de desmoralizar o presidente da República. É a mídia golpista, que se irrita ao ser chamada de golpista, de direita ou de conservadora, dando espaço para rimas golpistas.
Revejo, então, a primeira página do jornal. Na capa, em destaque, quadrinhos que mostram uma gafe cometida pelo presidente no México, ao não parar para saudar a bandeira brasileira. Abaixo, charge que ironiza a popularidade de Lula, segundo as pesquisas mais recentes. Na seção de cartas – que costumo chamar de segundo editorial, mas que também pode ser ‘Cartas cuidadosamente selecionadas’ – duas cartas sobre o artigo escrito pelo presidente, publicado no jornal de domingo. As cartas não comentam uma linha sequer sobre o conteúdo do artigo. Mas se ocupam em levantar a hipótese de que o texto não pode ter sido escrito por ele.
Ora, eu também acho que não foi. E que novidade há nisso? A coisa mais comum do mundo é que presidentes de empresas, presidentes da República, ministros e todo tipo de mandatário sejam assessorados, por sua equipe, em seus discursos e demais falas. Lula até gosta bastante de improvisar e é constantemente criticado por isso.Vai entender. Mas, o foco aqui nunca foi o artigo do Lula. Trata-se do ‘Partido da Mídia’ indo ‘à forra’.
O absurdo continua na seção ‘cartas-vale-tudo’, pois noto que há outras 11 cartas – de um universo de 24 – que falam mal do presidente, seja culpando-o pelos acidentes aéreos, seja reclamando de sua popularidade e relacionando-a às políticas sociais, seja apenas desrespeitando-o. Orgulho-me de poder constatar com meus próprios olhos na combinação de notícias, artigos, charges e cartas do jornal, o que aprendi na faculdade: nada no jornalismo é por acaso e imparcialidade não existe.
Depois da Torloni, Kamel
Ficou claro a tentativa de desmoralizar o presidente de todas as formas, inclusive as mais absurdas, como no caso das cartas. Trata-se de mostrar, a todo momento, enfatizando e remoendo, que Lula não tem curso superior, não é poliglota, é nordestino, metalúrgico. Não é paulista, nem doutor em coisa alguma. Atacam a popularidade do presidente com os mesmos argumentos que usam para o denegrir. Dizem que é popular entre os pobres e ignorantes. Que foi eleito pelo Bolsa Família e pelos nordestinos. Mentira. Este é o argumento superficial e preconceituoso da elite tupiniquim para atingir a imagem do governo que mais transferiu renda na história do país. ‘Faz parte da ideologia da elite branca (e separatista, no caso de São Paulo) que se expressa na mídia conservadora (e golpista) explicar a popularidade do presidente Lula com a circunstância de a maioria dos brasileiros ser pobre e ignorante’, afirma Paulo Henrique Amorim.
Minhas críticas ao governo Lula são infinitas. Fico indignada ao vê-lo apoiar a política de (in)segurança pública que vigora no Rio de Janeiro. Não admito que, depois de cinco anos à frente do país, a reforma agrária ainda seja uma promessa e que todos os assentamentos existentes nesta nação continuem sendo fruto de uma ocupação – seria melhor se já não necessitássemos delas. Preocupa-me a política econômica, que só favorece o capital financeiro, a perseguição ao superávit primário, a obsessão com o pagamento da dívida externa e a forma pela qual nos rendemos por conta disso.
Questiono, também, as políticas sociais. Não é como queremos, têm cunho assistencialista, conformista. Mas me divido ao imaginar os milhões de pessoas que delas se beneficiam e como, com todas as falhas, representam um avanço para este país. Não durmo ao lembrar dos oligopólios midiáticos, ao me perguntar quando daremos um passo rumo à democratização dos meios de comunicação. Me indigno, me revolto, como muitos, com os rumos do governo que ajudei a eleger. Mas, me indigno mais ainda com a elite deste país, que não se cansa jamais. Porque se cansassem, não viveríamos os muitos ‘caos’ em que nos encontramos.
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PS: Depois de ler o artigo da Christiane Torloni, li o de Ali Kamel em defesa da grande imprensa, que está logo abaixo. Queria falar dele aqui, mas me segurei. Um texto que afirma que ‘quanto mais variadas forem as fontes de recursos que sustentam um jornal (…) mais livres e independentes (sic) serão esses veículos’, merece uma discussão própria.
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Estudante de Jornalismo, Rio de Janeiro, RJ