‘Ser a primeira mulher a se tornar presidente no Chile não deixa de ser um desafio importante. Sei que existe uma expectativa muito grande a respeito disso. Mas acredito que minha posição política de hoje é o reflexo de uma sociedade que cada dia mais amadurece em termos de integração e tolerância. Há décadas que a mulher chilena, como milhões de outras mulheres em toda a América Latina, estudam, trabalham e alcançam altas posições na sociedade, nos sindicatos e empresas. Faltava que a política se colocasse em dia com esta transformação social. Por isso, não creio que a mulher política tenha de superar obstáculos maiores só pelo fato de ser mulher’. (O Estado de S. Paulo, 21/8)
A declaração é de Michelle Bachelet, a candidata mais forte nas próximas eleições presidenciais do Chile e que a imprensa brasileira começa timidamente a mostrar ao público. Na entrevista publicada pelo Estado, por exemplo, foram apenas seis perguntas, além das notícias esparsas – e sempre tímidas – desde que ela começou a aparecer como provável vencedora das eleições chilenas.
Michelle Bachelet, ex-ministra da Defesa do governo de Ricardo Lagos, lidera todas as pesquisas para a eleição de dezembro no Chile, que disputará com o empresário Sebastian Piñera e o prefeito de Santiago, Joaquin Lavin.
Bastaria digitar o nome dela em qualquer mecanismo de busca da internet para poder compor um perfil completo da entrevistada e sua plataforma de governo. Mas é como se os jornais preferissem deixar o trabalho para seus leitores.
O Estado registra a existência da candidata, discute suas idéias com relação ao Brasil e esquece que está mostrando um fato extraordinário, o de que ela poderá ser a segunda mulher, na América Latina, a se tornar presidente (a primeira e única foi Isabel Perón, que assumiu o governo da Argentina em 1974).
E, se os jornais apenas registram, as revistas femininas fazem ainda pior. Claudia fala de Hillary Clinton e Condoleezza Rice, em matéria especulativa sobre as possíveis candidatas à presidência dos Estados Unidos. Mas desconhece a nossa ‘vizinha’ chilena, que tem grandes possibilidades de efetivamente assumir o cargo.
Será que as duas americanas, a ex-primeira-dama e a atual secretária de Estado, têm muito mais apelo do que Michelle? A chilena é cirurgiã, pediatra e epidemiologista. Deixou o país depois de o pai ter sido morto pela ditadura de Pinochet, quando ela e a mãe também foram presas. Em 1983, de volta ao Chile, formou-se em Medicina e teve uma carreira brilhante, trabalhando no Ministério da Saúde e depois no Ministério da Defesa. Parece um prato para a pauta das revistas.
Integração e tolerância
Ao comparar o tratamento dado pela imprensa a Hillary e a Condoleezza com o total desconhecimento em relação à candidata chilena, fica evidente que o preconceito com relação às mulheres na imprensa começa dentro de casa. Se as revistas femininas preferem continuar cultivando a imagem de fútil e fofoqueira da mulher, se encaram as conquistas femininas como coisa de país desenvolvido, como cobrar atitude diferente dos jornais, que dedicam às mulheres seus singelos suplementos de fim de semana?
É só examinar o espaço dados às políticas brasileiras no noticiário para confirmar que a imagem da mulher continua a mesma dos tempos em que não havia mulheres na imprensa.
No interminável episódio das CPMIs, as mulheres que exercem um papel importante (tanto como inquisidoras quanto como depoentes) continuam tratadas como cidadãos de segunda categoria.
Se consideramos que temos no Congresso 42 deputadas federais e oito senadoras (menos de 10% de cada casa), e que quase todas mostram serviço, pode-se concluir que têm, proporcionalmente, um desempenho mais eficiente do que o dos homens. Portanto, seria natural supor que chegará um dia em que uma delas poderá até sonhar com uma candidatura presidencial. Mas, até lá, como diz Michelle Bachelet, a política terá que ser o reflexo de uma sociedade madura em termos de integração e tolerância. Segundo Bachelet, o que estava faltando no Chile era que ‘a política se colocasse em dia com esta transformação social’.
No Brasil falta mais do que isso. As mulheres já ocupam cargos importantes na iniciativa privada, destacam-se no governo, assumindo, como no caso da ministra Dilma Roussef, o cargo mais importante da República, depois da Presidência. Aqui, não é a política que falha em refletir a transformação social. Quem falha é a imprensa.
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Jornalista