Em meio a toda a crise que os críticos não se cansam, com justeza, de apontar, o jornalismo ainda é capaz de nos apresentar flagrantes e instantes que o justificam como dispositivo de revelação da singularidade, da força originária que pode ter o cotidiano presente e o simples frente aos grandes discursos sobre o futuro e sobre a complexidade do social, com que costumam nos acenar os partidos políticos e os governantes. Assim é o episódio narrado por O Globo (10/11/2004), em que o presidente da República manda uma carta de agradecimento à dona-de-casa Ione Pereira Machado (de Maringá, PR), de 48 anos, por ter devolvido o cartão do Bolsa Família alegando não mais precisar do benefício porque seu marido, Anquelino Machado, conseguiu um emprego com salário de 400 reais.
Ione, que mora em um bairro pobre de Maringá, cadastrara-se no programa havia nove meses, porque seu marido esteve desempregado durante um ano, dois meses e 20 dias. Com a chegada do cartão do Bolsa Família, em agosto, ela recebeu 50 reais. No fim de setembro, quando o marido recebeu o primeiro salário, resolveu devolver o cartão. ‘Ficamos com dor na consciência. A gente sabia que não era certo receber a ajuda porque ele [o marido] já tinha arrumado um emprego. Outras pessoas precisavam desse dinheiro’, justificou Ione. Quanto a Lula, soube do caso por uma reportagem do jornal Gazeta do Povo, de Maringá.
Uma brasileira
Não há como deixar de refletir, a partir deste episódio, sobre a relação que o Estado, seus aparelhos, suas elites internas e círculos externos imediatos (banqueiros, financistas, industriais, tecnoburocratas de agências internacionais) mantêm com o povo nacional.
Para começar, observe-se que dona Ione esperou nove meses pelo benefício (a rigor, teria morrido de fome se dele dependesse), porque a máquina administrativa do Estado é uma carroça puxada a burro. Em seguida, registre-se que uma família mergulhada na pobreza é capaz de uma lição pública de cidadania (confirmando, uma vez mais, a tese de Milton Santos de que a pobreza gera saber), a que permanecem surdos os políticos, administradores e empresários da espécie ultimamente caçada com espantosa eficiência pela Polícia Federal.
Em terceiro lugar, há também uma lição para o próprio Estado contemporâneo. Vale lembrar Karl Marx, num de seus escritos de juventude, quando afirma que ‘embora a política se situe idealmente acima do poder do dinheiro, ela tornou-se, de fato, escrava do dinheiro’. Marx está fazendo referência ao fato de que as estruturas políticas são primordialmente receptivas às exigências do modo capitalista de produção, manifestando e ocultando ao mesmo tempo a subordinação funcional do poder político ao econômico.
Se isso já era verdade para o Estado liberal clássico, pode-se imaginar o que agora se passa com o monetarismo feroz (elevados superávits primários, acima de tudo; fúria tributária; descaso para com a saúde e a educação públicas etc.) da política macroeconômica neoliberal que orienta os Estados a reboque dos grandes organismos internacionais.
No episódio narrado, o indivíduo, dona Ione, ensina algo de humano ao Estado. Por isso é que, em sua carta, Lula ressalta que ‘talvez a senhora não tenha idéia da importância do seu gesto num momento como que a gente está vivendo, dona Ione. O gesto de uma brasileira que, com toda a dificuldade que é a luta pela sobrevivência num país como o nosso, ainda encontra tempo para a solidariedade, é capaz da generosidade de pensar em seu semelhante’.
A diferença
Claro, a carta é louvável, é real a emoção da done Ione por receber algo assim da parte do presidente da República, assim como o jornalismo legitima-se enquanto discurso social ao dar destaque a um episódio desta natureza. É difícil não lembrar da frase de San Tiago Dantas, ainda no tempo de Vargas, no sentido de que ‘o povo é melhor do que a nossa elite’.
Resta apenas, como suíte jornalística capaz de aprofundar a questão, o contraponto necessário à carta, mostrando que se o indivíduo Lula fala com tom de líder de uma frente popular, o chefe de governo Luiz Inácio Lula da Silva atua como um político social-liberal, o que é bem uma outra coisa. Dona Ione, caso fosse dona de toda idéia do que isto significa, poderia não ficar tão alegre assim.
Pois alegria e simplicidade são os pontos que muito nos tocam na imagem do casal publicada nos jornais. Ione é robusta e risonha, Anquelino é alto, magro, com ar de Sassá Mutema, aquele personagem de O salvador da pátria, novela pré-Collor da Globo. A imagem é tanto mais pregnante quanto ela contrasta com a maioria das imagens jornalísticas que não se cansam de refletir a miséria ou a violência da condição humana.
Hoje, diz Baudrillard, ‘a miséria e a violência tornam-se, através das imagens, um leitmotiv publicitário: Olivero Toscani reintegra assim, na moda, o sexo e a aids, a guerra e a morte (…) Ora, a própria moda e a mundanidade são de qualquer forma um espetáculo de morte. A miséria do mundo é tão legível na linha e no rosto de uma modelo quanto no corpo esquelético de um africano. A mesma crueldade pode ser lida por toda parte, por quem sabe vê-la’.
O jornal nos deixa ver a diferença entre pobreza e miséria. Pobre, diz Joel Rufino num texto recente, é ‘aquele que ainda se vira’, isto é, que não entrega, como o miserável, a esperança social. Ione e Anquelino são manifestamente pobres e, em sua simples honestidade, nos sugerem lições de toda ordem. Inclusive, ao próprio jornalismo: é preciso investigar mais o cotidiano e desconfiar cada vez mais das promessas oficiais de resgate e redenção sociais.
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Jornalista, escritor e professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro