Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Imprensa e crime organizado

A Calábria é uma região da Itália que corresponde, no mapa do país, à ponta da bota: tem 15 mil quilômetros quadrados e 2 milhões de habitantes – é menor do que Sergipe e tem a população de Alagoas.

Os calabreses chegaram ao Brasil há pouco mais de 120 anos. São os responsáveis pelo termo pejorativo brasileiro para classificar os italianos como ‘carcamanos’, que pode ser traduzido como ‘carrega a mão’. Explicando: numa época, os calabreses se dedicaram ao comércio de frutas, legumes e peixes, mas ao vender tinham um parceiro escondido sob o balcão para roubar no peso. Quando colocavam a mercadoria na balança, diziam ‘carcamano’ para o cúmplice, e assim a balança pesava mais que o devido.

Mas o interessante é o por que emigraram para o Brasil. Em 1876 começaram a chegar aos país as grandes levas de imigrantes italianos procedentes do Vêneto, nordeste da Itália. Camponeses humildes e simplórios, cuja a vida se resumia a uma faina inumana durante a primavera, verão e parte do outono, para enfrentar rígido inverno que os obrigava a ficar por mais de 3 meses trancados dentro de casa. Foram para o Brasil para substituir a mão-de-obra negra nas grandes plantações de café. Os plantadores haviam chegado à conclusão que lhes custaria menos.

Todavia, com a escravidão ainda existente, os fazendeiros e feitores, encantados com a novidade dos cabelos vermelhos, os olhos azuis e os rostos sardentos das mulheres e das filhas dos italianos, começaram a fazer com elas o mesmo que faziam com as escravas – por isso os vênetos criaram sociedades de auxílio mútuo e mandaram vir da Itália os calabreses, que serviriam de sicários para vingar suas honras ofendidas. Estes pertenciam a uma recém-fundada sociedade para delinqüir e que fora denominada ‘Ndrangheta, expressão dialetal significando ‘homem valente’, algo análogo à Máfia siciliana.

O que se chama de ‘máfia calabresa’ tornou-se uma forte organização criminal, com atuação no contrabando de armas, tráfico de drogas e chantagem. Espalhou-se por toda a Itália, tem ramificações na França, Alemanha, Espanha, no leste europeu, nos Estados Unidos, Canadá, Bolívia e até na Austrália.

Instituição respeitada

A milenar cidade bizantina de Catanzaro é a capital da Calábria. Nela, ao que se diz, está assentado o estado-maior da ‘Ndrangheta e também o periódico mensal Il Dibattito, publicação da imprensa marrom que opera a seu serviço. Suas calúnias produzidas por capítulos: na primeira página anuncia um caso clamoroso que será denunciado no número posterior, do qual só a vítima pode saber do que se trata, e assim abre o caminho para poder extorqui-la. Seus alvos preferidos são empresários, parlamentares, prefeitos, advogados e magistrados.

Seu proprietário, diretor e redator Franco Gangemi também descobriu uma chicana para se livrar dos processos de calúnia a que responde: caluniava o juiz responsável pelo processo, este era obrigado a acioná-lo na Justiça, tornando-se assim impedido de julgar a causa anterior, de modo que os processos passavam infinitamente de mão em mão sem que se concluísse coisa alguma.

No dia 9 de novembro, Gangemi foi preso acusado de ter revelado no Il Dibattito notícias falsas, caluniosas e ameaçadoras para intimidar as atividades da Dda (direção distrital antimáfia) e por divulgar de informações secretas sobre as investigações contra o crime organizado local.

O termo ‘máfia’ atualmente dá nome a todas as associações para delinqüir existentes na Itália – seja a original siciliana, a da Sardenha, a calabresa ou a Camorra napolitana. Esta última há algum tempo vem travando uma luta interna e produzindo assassinatos diários. A polícia ostensiva e investigativa italiana é muito eficiente, os carabineri compõem uma das instituições mais respeitados do país, mas os acontecimento envolvendo a Camorra são muito preocupantes. As máfias estão ligadas entre si, no mínimo por afinidade ‘ideológica’.

Oportunidade perdida

Essa história de Gangemi não teve o tratamento devido por parte da mídia italiana. O fato foi divulgado por poucos jornais e de forma incompleta. O Corriere della Sera Magazine, em artigo assinado por Agostino Gramigna (‘Attualità Mafia’, 25/11), dava a entender que divulgaria os acontecimentos na Calábria, mas a sua leitura é uma decepção só: é confuso, contraria princípios elementares do jornalismo, cita pessoas sem explicar quem são, siglas sem serem definidas, a palavra ‘Ndrangheta não mencionada uma única vez e, no fim, não se entende nada.

O texto faz pensar (claro que não é possível) que seu autor tenha aderido à ‘omertà’ – isto é, ao silêncio cúmplice.

A mídia local perdeu mais uma oportunidade de extirpar esse tumor, que está corroendo a milenar cultura humanística italiana

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Jornalista