Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ingleses dão de goleada em textos de futebol

Os brasileiros transformaram no maior espetáculo da Terra o futebol que os ingleses inventaram. Mas são os ingleses, e não os brasileiros, os que têm a melhor seleção do mundo – de jornalistas que escrevem sobre futebol.


Por que não apareceu aqui ninguém capaz de calçar as chuteiras de Nelson Rodrigues e de Armando Nogueira – as estrelas solitárias da que deram luz de literatura à chamada crônica esportiva?


Pior: por que o repórter inglês típico descreve com muito mais graça, arte e massas de informação condensada, do que o seu contraparte brasileiro, o jogo que estará no jornal no dia seguinte?


Cada partida, este leitor ousa dizer, é um exemplo.


Apenas por serem os casos mais recentes, quando este texto é escrito, comparem-se, de um lado, as matérias do Estado de S.Paulo e da Folha de S.Paulo sobre o primeiro jogo do Campeonato Paulista deste ano, entre o Corinthians e Noroeste de Bauru, publicadas na quinta-feira (12/1); e, de outro, a matéria do Guardian de Londres, da mesma data, sobre o jogo da véspera entre o Manchester United e o Blackburn, pela terceira rodada do torneio da Liga Inglesa.


Os jornais brasileiros cobriram corretamente o que a partida vencida pelo Noroeste por 1 a 0 tinha de mais ‘notícia’. Primeiro, os erros do juiz contra o Corinthians – o mesmo Corinthians que teve a notória ajuda do apito para ganhar o campeonato nacional, o que a Folha espertamente pôs na primeira linha da reportagem. Depois, a saia-justa entre o craque Tevez, que jogou a contragosto, alegando precisar de mais descanso e de mais treinos, e a comissão técnica do clube, que afinal cedeu, deixando de escalá-lo para a partida seguinte – com uma explicação esfarrapada que os jornais registraram no tom merecido.


Mas em nenhuma das matérias havia alguma passagem que não fosse chapada, que tivesse um mínimo de molho. Exagerando mas não muito, o resultado ficou tão interessante como a ata de uma reunião de condomínio. Nenhuma ousadia de linguagem, nenhuma sacada irônica, nenhuma correlação mais ambiciosa entre os fatos cobertos e acontecimentos passados. E é de futebol que se trata!


Já o Guardian, no primeiro parágrafo do texto sobre o 1 a 1 do jogo inglês, fala que o Manchester United ‘redescobriu um pouco de sua velha auto-estima’.


Adiante, que na maior parte do tempo o time ‘faiscou sem acender de verdade’. Em outros momentos, que jogou ‘com controle, compostura e senso de propósito’. O repórter usou a metáfora ‘queimar os dedos’ para explicar a tática do técnico do Man U, Sir Alex Ferguson, e o substantivo ‘ferocidade’ para descrever um chute do norueguês Pederson, do Blackburn, ‘que já tinha um belo portfólio de gols espetaculares, ao qual acrescentou mais este’.


Falta um algo mais


O que remete este leitor a quem ele considera o campeão mundial do gênero, o inglês (para variar) Rob Hughes, que escreve desde 1991 no International Herald Tribune, o auto-intitulado ‘jornal mundial’, editado em Paris e impresso numa pá de cidades, São Paulo entre elas.


Ninguém melhor do que ele descreveu os dois melhores momentos do pentacampeonato conquistado pelo Brasil na última Copa: as vitórias sobre a Inglaterra por 2 a 1 nas quartas-de-final e sobre a Alemanha por 2 a 0, na finalíssima.


As duas respectivas matérias mereciam fazer parte de qualquer antologia que reunisse os melhores textos sobre futebol jamais escritos.


A primeira pode ser lida aqui e segunda, aqui (em inglês).


Exemplos de ouro puro do mestre Hughes:


** ‘Os brasileiros jogaram quase todo o segundo tempo com um homem a menos, mas a sua habilidade em manter a bola, em mergulhar a Inglaterra em poços profundos de dor e frustração, fazia parecer que eles tivessem pernas e pulmões extras.’


** ‘Ronaldinho é o membro júnior dos três Rs brasileiros [ao lado de Ronaldo e Rivaldo], o jogador energético que reza para que o seu nome se avizinhe da glória – e da fortuna – dos outros dois.’


** ‘Ele criou o primeiro gol do Brasil com um surto cintilante de ritmo e percepção.’


** ‘Isto foi pirataria’ [para descrever o primeiro gol do jogo, da Inglaterra, porque o time se dedicava exclusivamente a conter o Brasil].


** ‘Até os brasileiros às vezes transformam tarefas simples em erros.’


** ‘No segundo minuto da prorrogação do primeiro tempo, Ronaldinho levantou vôo. Ele decolou, ao que parece, por instinto. Como limalha de ferro perto de um ímã, ele fez convergir toda a defesa inglesa.’


** ‘Foi uma formalidade’ [o gol de Rivaldo, a 13 metros do goleiro].


** ‘Seaman, um dos mais experientes goleiros do futebol mundial por alguma razão estava no lugar errado e com o estado de espírito errado’ [na falta cobrada por Ronaldinho que deu o segundo gol ao Brasil].


** ‘Talvez Ronaldinho seja um estudioso do futebol. Talvez ele se lembre de que uma década atrás Seaman foi batido da mesma forma… Mas Seaman decerto se lembrou. Suas lágrimas ao final do jogo eram as de um homem que, aos 38, provavelmente não terá mais a chance de expiar [as suas falhas] neste nível.’


** ‘Mas todas essas histórias empalideceram diante da emoção que Ronaldo transpirava, a alegria que transmitia e sentia e o que ele encarna como um esportista multimilionário em dólar que, por puro amor ao jogo, resgatou-se do desespero [na final contra a França, em 2000]… uma paródia de sua grandeza [que] doía só de ver.’


** ‘A Alemanha tomou a iniciativa desde o começo. Vocês são brasileiros, querem pensar? Não terão tempo. Jogar? Não terão espaço. Marcar? Escassa oportunidade.’


** ‘Três vezes durante o primeiro tempo Kleberson retraiu o seu pé esquerdo como o cão de um revólver. Bang, bang, bang, partiu a bola.’


** ‘Antes mesmo de a bola escapar de Kahn, Ronaldo corria para ela. Quando caiu, ele chegou, o largo sorriso já se espalhando.’


** ‘Gerald Asamoah estava a uma jarda de distância, mas não faria diferença se ele ainda estivesse no banco.’


** ‘Ronaldo foi substituído. Mas não há substituto para esse gênero de história, o círculo que se fecha do aleijado que volta a ser fenômeno. Ele sepultou o seu fantasma de 1998, marcou os seus 44º e 46º gols em 64 competições internacionais, e alcançou os 12 gols de Pelé em Copas do Mundo. Não há louvor maior, nem vencedor mais meritório.’


O Brasil tem Ronaldo, Ronaldinho, Robinho – o que se queira e mais alguma coisa. Mas que faz falta um Rob Hughes brasileiro para narrar as suas sagas, lá isso faz.


[Texto fechado às 17h08 de 12/1]