A menina torturada em Goiânia deixou de ocupar as manchetes de jornais e noticiários de TV. Cedeu seu espaço para outra tragédia: a morte de Isabella, cinco anos, no dia 29 de março. Faz uma semana que a mídia não fala em outra coisa. E, graças ao sucesso das séries CSI, viramos todos experts. Todo dia encontramos novos detalhes da investigação: das cartas do pai e da madrasta, ao modo como são feitos exames de DNA no sangue encontrado no apartamento. E, embora a polícia tenha dito que as investigações são sigilosas, todo dia tem um policial anônimo dando novos detalhes sobre o processo.
Enquanto os jornais enriquecem as matérias com especulações e infográficos, a TV, que tem a vantagem de poder dar informações ao vivo, faz o show. No dia em que o pai da menina e a madrasta foram presos, o helicóptero da Globo acompanhou o percurso dos carros que, segundo a repórter da Globo News, ‘chegaram em alta velocidade’. Pelo que se viu no vídeo, em alta velocidade estavam apenas os repórteres com suas câmeras e celulares, tentando pegar a imagem do casal. Como não conseguiram nada, o canal ficou um tempo interminável mostrando cenas do interior da delegacia onde policiais cumpriam sua rotina.
O pacto da relação familiar
Por pura falta de novidades, Veja dedicou sua capa da semana (6/4/2008) ao ‘Mal’, o vencedor da semana, com tiradas filosóficas, misturando o caso de tortura de Goiás, o abandono de um bebê em Minas e a morte de Isabella:
‘Essa sucessão de fatos macabros traz a incômoda lembrança de uma constante da história humana: a maldade. O mal está presente em toda parte… Mas como metabolizar na alma o mal doméstico, que vem nu, sem disfarces, sem o véu de sofismas que poderiam desculpá-lo e torná-lo suportável pela racionalização de sua origem? Como entender que o sorriso angelical de Isabella possa ter sido substituído pela máscara da morte no frescor dos seus 5 anos de vida?’
Se os jornais também alimentam seu noticiário com a interminável cobertura das investigações e entrevistas com os parentes mais próximos da menina vítima, pelo menos procuram justificar o porquê de tanto interesse no crime. Um bom exemplo é a declaração do psiquiatra e psicanalista Jorge Forbes:
‘Esses crimes, como a morte de João Hélio, no Rio, e a morte do casal Richthofen, em São Paulo, abalam porque afrontam o pacto de existência da sociedade. Eles ferem o acordo das relações fundamentais entre as pessoas. São diferentes de crimes que têm uma causa aparente. As pessoas começam a perguntar se elas também seriam capazes de cometer um crime como esse e é isso que cria a comoção… A relação familiar, por exemplo, é um dos pactos mais difíceis de quebrar… A família ainda é um lugar de amor e afeto acima de qualquer suspeita e uma demonstração contrária a isso choca a sociedade e faz com que se crie uma paranóia muito grande’ (O Estado de S. Paulo, 4/4/2008).
TV induz ao veredicto
Outro texto que fugiu do lugar-comum foi ‘A sociedade do espetáculo’, de Rosely Sayão, que acompanhou a missa de sétimo dia da menina Isabella e recebeu a seguinte explicação para a presença de tanta gente na missa: metade eram freqüentadores da igreja, os outros foram para ‘quem sabe ter a chance de aparecer nos canais de TV que estão aí’.
Rosely conclui o depoimento dizendo:
‘Assim que o padre termina a missa, todos os jornalistas com suas câmeras, microfones, telefones celulares ligados e luzes fortes correm e rodeiam a mãe de Isabella. De longe, me coloco no lugar dela, aprisionada pela sociedade do espetáculo a qualquer custo, e me entristeço’ (Folha de S.Paulo, 6/04/2008)
Os jornais tentam compensar a impossibilidade de vencer a força de imagens ao vivo discutindo o assunto de forma mais séria. Mas quem faz a cabeça do povo é a TV. Para pessoas que não têm acesso à informação escrita, o caso está resolvido: se o pai era inocente, por que se apresentou com advogado? Gente que, graças às séries CSI, hoje sabe que luminol revela a presença de sangue em qualquer lugar e outros detalhes misteriosos que transformaram a perícia policial em conversa tão fascinante como o último capítulo do BBB. E a TV já induz ao veredicto, antes das provas e do julgamento: culpados.
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Jornalista