ELEIÇÕES 2006
Carlos José Marques
Jornalismo de primeira
“A edição da Revista ISTOÉ da semana passada trouxe como matéria de capa uma denúncia de teor contundente que envolve o ex-ministro da Saúde José Serra com a máfia das ambulâncias – o escabroso esquema de desvio de dinheiro público que sangrou os cofres da União em mais de R$ 110 milhões. A denúncia era feita pelos empresários Darci e Luiz Antônio Vedoin (pai e filho), os mesmos que nortearam todas as investigações e acusações da CPI dos Sanguessugas, da Polícia Federal e do Ministério Público. A Revista chegou às bancas quase ao mesmo tempo que uma operação de busca e apreensão era deflagrada pela PF e flagrava dois personagens que, em nome do Partido dos Trabalhadores, negociavam um tosco dossiê, com provas vagas – entre as quais fotografias de inauguração, CD-ROMs vazios e vídeo – em que o ex-ministro Serra aparecia com supostos envolvidos na Máfia dos Sanguessugas. A coincidência de temas (Serra e os Sanguessugas) e de datas da chegada da Revista às bancas e da operação policial levou setores e pessoas a fazerem ilações irresponsáveis e indevidas de uma aliança espúria que ligaria a reportagem de ISTOÉ com a negociata de um dossiê fajuto.
Dadas as distorções que marcaram o assunto nos últimos dias, cabe informar a você, leitor, que ISTOÉ não participou de esquemas, tramas urdidas com fins eleitoreiros ou acordo de qualquer natureza. Nem fez ‘sociedade’ com partidos políticos para pagar pela reportagem publicada, como chegou a ser divulgado. Ninguém esteve autorizado a negociar qualquer material em nome de ISTOÉ e se negociações paralelas envolvendo dinheiro ocorreram não foram com o aval da Revista. A equipe de ISTOÉ restringiu-se a avaliar o valor jornalístico das declarações feitas pelos empresários Vedoin. Em nota, o Editor e Diretor responsável da Editora Três, Domingo Alzugaray, apontou que a Revista ‘não compra e nem nunca comprou dossiês ou entrevistas’.
ISTOÉ praticou neste caso – como sempre vem praticando nos seus 30 anos, completados justamente em 2006 – jornalismo de primeira grandeza. A reportagem à qual você, leitor, teve acesso na edição passada foi fruto de uma cuidadosa apuração, dentro dos mais genuínos valores da informação, trazida por dois profissionais que, em várias ocasiões, demonstraram a qualidade do seu trabalho nas páginas de ISTOÉ e ajudaram a construir parte do prestígio que a Revista carrega até hoje. Mário Simas Filho, redator-chefe, e Biô Barreira, editor de fotografia, saíram na pista de uma fonte para chegar aos Vedoin e conseguiram deles uma entrevista que lança luzes sobre operações ainda obscuras no Ministério da Saúde à época da gestão Serra.
Naturalmente, como ocorreu em diversas ocasiões no passado, adversários do trabalho editorial de ISTOÉ animaram-se numa primeira hora com a idéia de tentar denegrir a imagem da Revista, misturando fatos e buscando fazer parecer tudo a mesma coisa. O intuito claro é de conseguir calar a Revista. Cabe a questão: por que ISTOÉ incomoda tanto? Você, leitor, mais do que ninguém, pode avaliar as razões – e deve estar certo de que nenhuma pressão vai conseguir desviar seus profissionais da prática cotidiana de um jornalismo maiúsculo, com o objetivo primordial de melhor informá-lo.
Para a completa compreensão do episódio cabe aqui reavivar as circunstâncias em que se desenvolveu a reportagem. Na quinta-feira 7, ISTOÉ foi procurada por um senhor que se apresentava pelo nome de Hamilton e que perguntou do interesse da Revista numa entrevista com os Vedoin. Dada a condição dos Vedoin de protagonistas do Caso Sanguessugas, ISTOÉ mostrou interesse. A entrevista não foi ‘negociada’ – definição que pode pressupor algum tipo de troca -, mas sim sugerida por Hamilton e aceita pela Revista. Também não ocorreu ‘oferta de dossiê’. Os documentos divulgados na reportagem (cheques, depósitos bancários e a liberação das emendas para a compra de ambulâncias) foram entregues diretamente pelos Vedoin aos jornalistas e publicados por se tratar de papéis que corroboram a versão apresentada pelos entrevistados. Os referidos papéis foram encaminhados pelos advogados dos Vedoin e protocolados junto à Polícia Federal e ISTOÉ só se dispôs a publicá-los depois de confirmar esse protocolo. Vale a ressalva de que tais documentos nada têm a ver com o dossiê fajuto apreendido num hotel paulista com os emissários petistas Gedimar Pereira Passos e Valdebran Padilha, nomes dos quais a ISTOÉ só passou a ter conhecimento após a detenção dos mesmos.
Outra confusão lançada sobre a reportagem diz respeito ao ritmo da apuração e seu fechamento. A entrevista com os Vedoin foi realizada na quarta-feira 13, na casa deles em Cuiabá – e não ‘entre os dias 6 e 7’ ou ‘duas semanas antes’ como chegou a ser noticiado. Assim, 24 horas depois, já na noite da quinta-feira 14, a edição da Revista estava concluída e chegava às bancas ainda nas primeiras horas da sexta seguinte. As 11 da manhã daquele dia, ISTOÉ atingia dezenas de Estados, incluindo toda a praça de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Não ocorreu favorecimento algum de informação antecipada a candidatos ou partidos – e se, porventura, a edição foi usada em horário eleitoral gratuito, não é de responsabilidade da Revista. Qualquer leitor poderia se dirigir à banca mais próxima e adquirir seu exemplar.
O que coube ao corpo editorial de ISTOÉ foi a decisão de publicar o teor das declarações dos Vedoin e tal decisão se deu em virtude da atuação que os dois tiveram como pivôs da Máfia das Ambulâncias. Os depoimentos de ambos vinham sendo considerados pela Polícia Federal dentro do mecanismo da delação premiada e serviram também de base para que a CPI abrisse 67 processos de cassação de mandatos parlamentares na Câmara dos Deputados e outros três processos no Senado. Dois deputados, denunciados pelos Vedoin, já renunciaram e várias candidaturas às próximas eleições estão sub judice nos tribunais eleitorais por constarem da lista desses empresários. Em outras palavras, o que disseram e vêm dizendo os Vedoin têm tido efeito direto no cenário político brasileiro e ISTOÉ não podia simplesmente desconsiderar as graves acusações que eles traziam por ocasião da entrevista. O ministro-chefe da Controladoria Geral da União (CGU), Jorge Hage, diz que há mais provas contra Serra além da denúncia dos Vedoin. E observou: ‘Serra deve ter o mesmo tratamento que usaram para incriminar Humberto Costa’, outro ex-ministro da Saúde, que já está indiciado no inquérito da PF.
Curiosamente, o caso Serra foi poupado de apuração, abafado pelos eventos paralelos que redundaram no dossiê forjado. A Revista ISTOÉ entende que cabe à polícia e à CPI investigarem com profundidade a história do dossiê encontrado em mãos dos petistas, assim como acredita que as acusações lançadas contra o ex-ministro Serra pelos Vedoin precisam seguir os mesmos trâmites de apuração. Não devem cair no esquecimento. É vital para o processo democrático brasileiro, e também por uma questão de justiça, que as nebulosas operações dos Sanguessugas durante a gestão do ex-ministro Serra passem pelo crivo de averiguação das autoridades. Fazer diferente é colocar o ex-ministro numa condição especial, abrindo um perigoso precedente no caso dos Sanguessugas.
De sua parte, ISTOÉ segue adiante mostrando nesta edição quem são e quais os laços de envolvimento de alguns dos personagens trazidos à baila pelos Vedoin. Destaca-se nesse grupo o nome do empresário Abel Pereira, para quem foram lançados alguns dos cheques do Grupo Planam, dos Vedoin, e que possui estreito relacionamento com Barjas Negri, o braço direito de Serra à época de sua passagem pelo Ministério da Saúde. A reportagem sobre Abel Pereira, que começa à página 28 desta edição, segue o mesmo princípio de bem informar você, leitor, com responsabilidade, equilíbrio e contra qualquer tipo de pressão. A Revista imagina estar desta maneira contribuindo para o esclarecimento dos fatos, dentro de uma sociedade que preza a liberdade de informação. Tenha uma boa leitura.”
Mário Simas Filho
Por dentro da reportagem
“No feriado de sete de setembro, recebi na redação de ISTOÉ um cidadão que se identificou apenas pelo primeiro nome – Hamilton -, como costumam fazer diversas pessoas interessadas em passar informações a jornalistas e se manter no anonimato. Calmo, Hamilton informou que os empresários Darci e Luiz Antônio Vedoin, os donos da Planam, entregariam novos documentos à Justiça capazes de comprovar a participação dos ex-ministros da Saúde José Serra e Barjas Negri com o esquema dos sanguessugas. Afirmou que eram documentos bancários, mas não sabia precisar exatamente quais e disse que tanto Darci como Luiz Antônio estariam dispostos a conceder uma entrevista. Tratava-se, claro, de um fato jornalístico importante que merecia ser melhor investigado, pois desde que o escândalo das ambulâncias foi flagrado pela Polícia Federal os depoimentos dos Vedoin têm norteado as investigações. Chamei outros três jornalistas para participar da conversa e concluímos que a Revista teria, sim, interesse em entrevistar os chefes do esquema sanguessuga. Alertamos, porém, que ISTOÉ somente publicaria o que pudesse ser comprovado com documentos, pois, como ambos vinham entregando parlamentares a conta-gotas, não poderíamos nos ater unicamente às suas declarações. Hamilton disse que falaria com os Vedoin e faria novo contato com a Revista. Em nenhum momento da conversa tida na redação foi feita ‘negociação’ ou qualquer tipo de ‘acordo’. Houve, na verdade, uma condição imposta pela Revista: a de que teríamos acesso aos documentos entregues à Justiça.
Hamilton só voltou a fazer contato na manhã da terça-feira 12, por telefone.
Informou que os Vedoin haviam concordado em nos mostrar os documentos que seriam entregues à Justiça e que dariam a entrevista em Cuiabá (MT). Eles estavam em uma fazenda perto da capital do Estado. Perguntei o endereço e Hamilton respondeu dizendo que chegando a Mato Grosso eu deveria fazer contato com um certo Oswaldo ou um certo Expedito, e forneceu o número do telefone de cada um deles. No mesmo dia, eu e o editor de fotografia de ISTOÉ, Biô Barreira, embarcamos para Cuiabá no vôo JJ 3780, da TAM. Com o atraso para decolar de Congonhas, desembarcamos na capital mato-grossense pouco antes de meia-noite (horário local). De táxi, fomos ao Hotel Paiaguás, onde tínhamos reservas feitas pela Revista. Da própria recepção do hotel liguei para o celular do tal Oswaldo. O propósito era o de fazer uma rápida conversa ainda naquela noite, pois planejava entrevistar os Vedoin logo pela manhã seguinte. Oswaldo e Expedito estavam hospedados no mesmo hotel. Conversamos por cerca de cinco minutos no hall de entrada do hotel. Ficou combinado que por volta das oito horas da quarta-feira 13 o advogado dos Vedoin, Otto Medeiros, entraria em contato conosco para passar o horário e o endereço de onde seria feita a entrevista.
Até as 10 horas da quarta-feira nenhum contato foi feito. Liguei, então, para o celular de Oswaldo e ele informou que os empresários só nos receberiam após a entrega dos documentos à Justiça, pois temiam que se a entrevista fosse feita antes poderiam ser prejudicados nos benefícios obtidos pela delação premiada.
Por volta das 13 horas, estávamos almoçando no próprio hotel quando o advogado Otto telefonou informando o endereço de onde iríamos nos encontrar com os Vedoin. Pegamos um táxi e nos dirigimos para a rua Haiti, em um bairro de classe média não muito distante do hotel. Em um sobrado confortável, fomos recebidos pelo advogado Otto. Ele nos apresentou aos Vedoin e logo chegaram Oswaldo e Expedito. Antes de iniciar a entrevista, o advogado mostrou preocupação. Disse que temia que as declarações de seus clientes pudessem ser deturpadas. Sugeri que não apenas a Revista, mas que ele próprio também gravasse a entrevista.
Em seguida, pedi para ver os documentos que os empresários estavam encaminhando para a Justiça. Me colocaram, então, diante de um punhado de cheques e de extratos bancários indicando depósitos feitos pelas empresas do grupo Planam, além de uma relação de recursos liberados pelo Ministério da Saúde para a compra de ambulâncias. Luiz Antônio, mais calmo, e Darci, visivelmente tenso, explicaram o significado de cada um daqueles documentos. Essa conversa preliminar durou cerca de uma hora. Foi feita em um escritório no andar térreo do sobrado. Na área externa, outras duas pessoas que não me foram apresentadas conversavam ao lado de uma churrasqueira.
A entrevista: pai e filho contaram detalhes do esquema a ISTOÉ
Depois de verificar os documentos e de ouvir um breve relato sobre eles, liguei para a redação de ISTOÉ em São Paulo e informei sobre o material que tinha em mãos e avisei que naquele momento começaria a gravar a entrevista. Um procedimento rotineiro em qualquer redação para que o pessoal que está trabalhando na edição possa dimensionar o tamanho que será dado à reportagem. Em seguida, por sugestão do advogado Otto, passamos a ocupar uma sala mais ampla no pavimento superior do sobrado. Luiz Antônio estava apressado. Queria começar logo a gravar a entrevista. Darci, nervoso, mostrava estar indeciso. Os dois deixaram a sala e voltaram cerca de dez minutos depois. Liguei o gravador e começamos a entrevista, publicada na última edição de ISTOÉ. Em determinado momento, Darci fez sinal para que eu desligasse o gravador. Desliguei. Ele vacilava, parecia preocupado e por cerca de cinco minutos deixou a sala na companhia do advogado. Oswaldo e Expedito permaneciam calados. Apenas acompanhavam a entrevista. Darci voltou e encerramos a entrevista com os Vedoin. O advogado pediu para ouvir a gravação, o que permiti, e ele assegurou aos empresários que tudo estava correto, que não haveria por que eles serem prejudicados. Nesse momento, recebi uma ligação da redação da Revista em São Paulo. Saí da sala para atender. Quando retornei, Darci estava mais nervoso. Sem jeito, disse que havia retirado a fita do gravador. ‘Você fez seu trabalho corretamente, mas há gente insistindo em outras coisas’, disse. Quis saber do que se tratava e Expedito informou que queriam que os Vedoin entregassem fotos de Serra. Perguntei que fotos e Darci explicou tratar-se de um evento onde o ex-ministro entregava ambulâncias ao lado de sanguessugas. Disse que isso não me interessava, pois nada via de relevante. Darci devolveu a fita e saiu da sala junto com Luiz Antônio para colocar um terno e posar para fotografias.
Terminada a entrevista, voltamos para o hotel. Durante a noite, escrevi a reportagem despachada por e-mail na manhã seguinte para a redação de ISTOÉ em São Paulo. Antes de fazer o último telefonema para a Revista, liguei do hotel para o procurador Mario Lúcio Avelar com o propósito de checar se os documentos apresentados pelos Vedoin de fato haviam sido entregues. Com a confirmação, liberamos a reportagem. Às 17 horas da quinta-feira 14, depois de ficar na lista de espera, embarcamos no vôo JJ 3898 da TAM com destino a Brasília, onde fizemos a conexão com o vôo JJ 3563 para São Paulo. No saguão de embarque, nos encontramos com Expedito e Oswaldo. Estavam angustiados porque os Vedoin não haviam entregue as fotos. Só durante a semana passada é que soube, pelos jornais, os nomes completos de Oswaldo, Expedito e Hamilton. Esse é o relato de como foi feita a reportagem publicada na última edição de ISTOÉ. Nunca nos foi oferecido o fajuto dossiê que petistas trapalhões tentaram comprar dos Vedoin. A Revista não participou de nenhuma ‘negociação’ para obter ou publicar a entrevista concedida e continuamos a investigar as denúncias feitas pelos chefes dos sanguessugas.”
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