Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Janio de Freitas

‘Cada um comemora as suas datas como queira. Apesar disso, não fossem os petistas esses seres originais que, ao chegar ao governo, viraram do avesso, não haveria o que explicasse a celebração, tão peculiar, dos 24 anos do PT, a começar do bolo levado por um dos ministros petistas, levado no rosto.

A propósito, as atitudes tortas do ex-sinistro da Previdência contra os anciãos afinal permitiram, contra todas as expectativas, que até os aposentados vissem Ricardo Berzoini, por um momento em sua vida, como um homem doce. Já a festança contratada no hotel Glória, cuja categoria merece melhores usos, teve amargor duplamente merecido. Primeiro, por ser uma comemoração falseada, celebrando a criação daquilo que o PT deixou de ser e que os petistas passaram a renegar. Depois, pelo desaforo de fazer a festa no Rio, que deu 80% dos seus votos a Lula, mas nunca foi tão maltratado pelo governo federal quanto no governo Lula.

O exótico modo petista de comemorar aniversário, deixando-se atingir por um belo escândalo de corrupção, não faltaria, porém, com algum marketing no único assunto que interessa a Lula, as relações internacionais. O festeiro governo encerrou, então, o longo período em que não se teve oportunidade de homenagear os norte-americanos com a lembrança de um dos seus chavões prediletos: o homem certo no lugar certo. É, agora, o que se pode dizer da escolha de um tomador de dinheiro da contravenção para negociar, em nome da Presidência da República, o apoio de parlamentares ao governo.

Alguém duvidou que o nível de conversas, para adquirir determinados apoio no Congresso, é o próprio daquele tipo de pessoa que a Presidência acaba de exonerar, sem no entanto desprezar os frutos que lhe trouxe?

A reação do governo foi rápida, mas, não havia como ser de outro modo, insuficiente para reduzir os riscos de que dela mesma advenha a continuidade, senão o agravamento, dos problemas que pretendeu conter. A crônica do exonerado Waldomiro Diniz, em sua passagem no governo fluminense, sugere que a investigação autorizada pelo governo, se correta, tem bastante com que se ocupar. E não há motivo, até pelo contrário, para supor que o (ex) subchefe de Assuntos Parlamentares da Presidência se tenha tomado de rigores só por subir do governo de Benedita da Silva, quando extinto, para o de Lula. O governo federal é sempre o território do maior e mais nefasto tráfico de influência.

Dois aspectos emergem, de imediato, das revelações de atividades passadas do assessor da Presidência. Um, é o divisor que esse caso impõe. Escândalos petistas, consumados como o do governador Flamarion Portela ou em estágio de suspeição como tantos outros, deixam a periferia e retiram, de uma vez, a imagem de austeridade invulnerável que o núcleo de comando do governo e do PT quis ter como proveitosa marca registrada.

O outro aspecto é problema propriamente político, já perceptível. Melhor cabeça política (ou seria a única?) no núcleo do governo, José Dirceu, e não Lula e muito menos a corrupção, é o alvo da oposição ao encontrar um fato consistente a explorar. José Dirceu, visto como um poder tão real quanto arredio, e por isso inconveniente, é também o alvo da maior parte da mídia, cujo padrão de relações com Lula transpareceu bem, dois dias antes da revelação de ‘Época’, no jantar a ele oferecido por uma colunista política do Globo, com numerosos jornalistas políticos de Brasília como comensais. A maioria dos presentes seria incapaz de, mal acabado o evento cordial, criar constrangimentos para o seu recepcionado. Mas já fazia o possível, há muito tempo, para dificultar a vida de José Dirceu no governo.

Um dos efeitos esperáveis dessa tendência será a maior procura de confirmação para os boatos que envolvem José Dirceu, por intermédio de outro assessor (Gilberto Carvalho), com as improbidades que estariam por trás do caso Celso Daniel, em Santo André, para financiamento das campanhas eleitorais do PT. Ainda imprevisíveis são os efeitos nos papéis que cada um desempenha no núcleo do governo, onde a disputa por poder e influência cerca-se de cautelas e de aparências atenuadoras, sem que por isso deixe de ser forte.

E aí o que estará em teste será a competência de Lula para lidar com seu primeiro problema grave: ceder à pressão, já evidente, para afastar ou minimizar a presença de José Dirceu tranqüilizaria a Presidência e o governo, mas a ambos retiraria o integrante que lhes dá alguma visão estratégica e tática política até para o dia-a-dia. Aquilo mesmo que o governo Fernando Henrique perdeu com a morte de Sérgio Motta, ficando entregue ao bater de cabeças até a derrota final.

A capacidade de reação do governo, e particularmente de Lula e de José Dirceu, conta com um aliado poderoso: a partir de quinta-feira, o Carnaval será o único interesse da mídia e por uns 10 a 15 dias os políticos estarão entregues à sua principal atividade -o lazer.’



Josias de Souza

‘Lula, Dirceu e o PT precisam de uma boa mãe’, copyright Folha de S. Paulo, 15/02/04

‘Dona Toninha, mãe de Antonio Palocci, bem que avisou. Diferentemente do filho dela, um poderoso discreto, José Dirceu vem ostentando poder em demasia.

O chefe da Casa Civil obviamente nunca foi de dar ouvidos a conselho de mãe. Um dos ensinamentos vitais de todas elas é: cuidado com as companhias.

Ainda menino, meteu-se numa ‘gangue de garotos’. Divertiam-se amarrando barbante em rabo de cachorro e roubando frutas nos quintais da vizinhança. ‘Eu era o pior’, reconhece Dirceu nas páginas de ‘Abaixo a Ditadura’, livro escrito em 98, em parceria com Vladimir Palmeira.

Aos 15, Dirceu trocou a modorra da pequena Passa Quatro (MG) pela sedução de uma fervilhante São Paulo. Foi ganhar a vida sozinho. Espremia-se com sete rapazes numa quitinete. Decorridos oito meses, foi expulso.

Tornara-se, ele próprio, companhia indesejável. ‘Eu aprontava muito’, admite. Embora menor, freqüentava cabarés. ‘Eu podia ter virado um trombadinha.’

Mais tarde, estudante da PUC, integrou-se à autodenominada ‘Turma da Canalha’. Sentava-se à mesa do professor, acomodava os pés sobre as carteiras…

Hoje, 57, segundo homem da República, cabelos ralos e nevados, Dirceu escreve as mais importantes páginas de sua notável biografia. A diferença é que agora suas travessuras são acompanhadas por uma nação atônita.

Sob Lula, o camarada Dirceu tornou-se, nas palavras do presidente, o ‘capitão do time’ petista. Nessa condição, escalou o segundo escalão. O dele e o dos outros.

Nenhuma nomeação importante na Esplanada escapou ao crivo de Dirceu. Assoberbado com a filtragem das indicações alheias, ‘descuidou’ da sua própria seleção. Levou para a sede da Presidência da República Waldomiro Diniz.

Escalou para fazer a ponte entre o quarto andar do Planalto e o carpete escorregadio do Congresso um personagem que, suspeita-se agora, coletava verbas eleitorais e negociava editais de concorrências públicas com o jogo do bicho carioca. Uma temeridade.

Por ora, o pior que se pode dizer da reputação de Dirceu é o seguinte: ou ele é um fenomenal distraído, ou gosta mesmo de viver perigosamente. Em qualquer hipótese, assume riscos incompatíveis com o cargo que exerce.

Alguém deveria assumir o papel de mãe do superministro. Dona Toninha, talvez. Alguém que pudesse ligar para Dirceu de vez em quando para dizer-lhe: cuidado com as companhias.

Em verdade, Dirceu não é o único a necessitar de atenções maternas. No instante em que completa 24 anos, o PT inteiro atravessa uma quadra delicada.

No poder, o partido sacrifica a aura de ‘diferente’ num processo pouco cerimonioso de composições políticas. Um ritual de cumplicidade em que uns são levados a aceitar as culpas dos outros em nome da fidelidade ao grupo. E todos terminam por igualar-se na abjeção.

Numa fase assim, qualquer mãe que se preze diria ao PT: evite o PMDB, pare de cortejar o PMDB, não dê ministérios ao PMDB, fuja do PMDB. Autorizado por Lula, Dirceu fez o oposto.

Lula, Dirceu e o PT seriam, porém, felizes se o PMDB fosse o único motivo de preocupação. Não é. Longe disso. Vêm aí as eleições municipais. E com elas a necessidade de dinheiro para as campanhas.

Em períodos pré-eleitorais, as necessidades partidárias costumam fundir-se perigosamente a certas demandas empresariais. Mencione-se, por oportuno, o caso das casas de bingo. Tinham em Waldomiro Diniz, agora ‘afastado’ do convívio palaciano, um bom aliado.

Os bingos funcionam precariamente, numa atmosfera de semiclandestinidade. Reivindicam uma lei que normatize a atividade. Nos bastidores, acenam com generosas contribuições de campanha. Valem-se da contribuição de pessoas conhecidas em Brasília. Entre elas o ex-senador Gilberto Miranda.

Em 1º de outubro de 2003, o Planalto editou um curioso decreto. Instituiu um grupo de trabalho para estudar alterações à ‘legislação que trata das atividades relacionadas à exploração dos jogos de bingo’. Traz as assinaturas de Dirceu e Lula.

O chefe da Casa Civil guarda em suas gavetas uma proposta de medida provisória que, editada, deixaria felizes os exploradores do bingo. Na última quinta-feira, um grupo de procuradores da República foi ao Planalto para fazer um alerta.

Os procuradores esperavam ser recebidos por Dirceu. Contentaram-se em dialogar com um auxiliar do ministro, Johaness Eck. Relataram a ele o conteúdo de inquéritos que, espalhados pelo país, associam o bingo ao crime organizado e à lavagem de dinheiro.

É, de novo, um caso de ausência de mãe. Qualquer uma diria: afastem-se dos bingos, rasguem essa medida provisória, esqueçam a parola de que geram milhões de empregos. O comércio de cocaína também emprega brasileiros e nem por isso deve ser legalizado.

Em conversa com jornalistas, na última quarta-feira, Lula disse que não dá atenção a funcionários subalternos. ‘Delego confiança’, disse ele. ‘Trato com o primeiro escalão.’ Uma boa mãe diria ao presidente: use parte do tempo que desperdiça criando metáforas para observar os Waldomiros, meu filho. É para o seu próprio bem.’



Reinaldo Azevedo

‘‘Meireles e Krieger faltaram ao churrasco’ ou ‘O fatalismo da chuleta’’, copyright PrimeiraLeitura (www.primeiraleitura.com.br), 13/02/04

‘Alguns coleguinhas, como nos chamamos os jornalistas, censuraram a abordagem de Primeira Leitura (leia edição anterior) do regabofe concedido pela colunista Tereza Cruvinel ao presidente Lula e a um grupo selecionado de jornalistas. Reclamaram do nosso ‘moralismo’, e houve até quem lembrasse que a casa de outro jornalista, em Brasília, nos anos FHC, era também palco de recepções semelhantes – sem o presidente presente, vá lá. Tenho certa dificuldade para lidar com alguns critérios vigentes de classificação do que é ou não ‘moralista’. Ser aquela churrascada coisa corriqueira em Brasília não a torna, por si mesma, aceitável. O fato de determinada prática ser consagrada pelos costumes não a torna fruto da árvore da vida.

Todos ali faziam escolhas. E escolhas também políticas. De resto, pergunto: e daí que o governo anterior também tivesse o seu ninho no jornalismo/colunismo brasiliense para engravidar jornalistas pelo ouvido? As escolhas dos que foram apeados do poder não qualificam nem alteram as nossas escolhas. Até porque, convenha-se, se fosse para saudar continuísmos, outra seria a linha editorial deste site, pois não? Ademais, quem quer que tenha lido direito o que aqui se escreveu pôde ver o reconhecimento claro e explícito de que o encontro teve a sua serventia. Quem quis pôde ver o novo poder na sua inteireza. Há realidades que se revelam a despeito até da intenção do escrevinhador.

Nessas horas, sempre me lembro do livro que Fernando Sabino escreveu com as memórias de Zélia Cardoso de Mello, a ex-czarina (rá, rá, rá) da economia do governo Collor. Não faltou quem pegasse no pé de Sabino. ‘Um livro ridículo!’, diziam. Pois eu acho que o escritor – que não demonstra na obra menos admiração pela biografada do que demonstram Cruvinel e outros presentes por Lula – prestou um serviço ao país. A churrascada concedida ao presidente é história em estado puro. Cada um ali era assim uma espécie de Restif de la Bretonne a presenciar, em tempo real, fatos verdadeiramente sensacionais.

Uma coincidência eleva o ocorrido à condição mesmo do ‘maravilhoso’. Àquela altura, enquanto Lula fazia digressões sobre o fim dos direitos trabalhistas e sobre o seu desassossego quanto entrava em férias – desde quando ele não pisa no chão da fábrica e colhe os recursos de sua sobrevivência do proselitismo político? -, Época devia encaminhar a redação final da reportagem que revela o homem forte de Dirceu pego com a boca na botija.

Àquela altura, dados o andamento da reportagem, a bomba já devia ser de conhecimento do Planalto. Ainda assim, a assessoria da Presidência houve por bem enredar 18 profissionais numa pantomima. E, ao que se vê na lista dos presentes, dela não constam os também jornalistas, ora vejam, Andrei Meireles e Gustavo Krieger. Não, senhores! Primeira Leitura acredita que o churrasco de Cruvinel fez um bem imenso ao país. De resto, imaginem quanto custa a Krieger, gaúcho dos bons, deixar a carne de lado para se dedicar à notícia. Dele e de Meireles, diria Nelson Rodrigues serem ‘homens inatuais’, pouco adaptados à metafísica influente.

E, claro, este site não poderia deixar de lembrar uma passagem de um livrinho de política (essa nossa mania…). Falando de Luís Bonaparte, disse Marx em O 18 Brumário ‘Na sua qualidade de fatalista, ele vivia (…) imbuído da convicção de que existem certas forças superiores às quais o homem (…) não pode resistir. Entre essas forças estão, antes e acima de tudo, os charutos e o champanha, as fatias de peru e as salsichas feitas com alho’. Muito à brasileira, estamos descobrindo o fatalismo da chuleta.

E Lula tem razão, convenhamos, em apostar, à semelhança de Luís Bonaparte, na atração fatal que certos ingredientes do poder exercem em alguns setores da sociedade civil. Particularmente, achei encantadora a defesa que o presidente, o proclamado ‘maior líder operário da história do país’, fez, na roda da chuleta, do fim dos chamados direitos trabalhistas.

Muito à vontade, especulou sobre o fim da multa do FGTS, o parcelamento do 13º salário, considerando inegociáveis apenas as férias remuneradas – para ele, um direito que existe em todo o mundo. Sabem como é: jornalismo inquisitivo não se verga jamais. Nessa hora, alguém lembrou ao presidente que, nos EUA, esse negócio de férias remuneradas não é consagrado em lei. É isso mesmo, gente. Há que se ser implacável com a verdade. Nenhum dos presentes, ao que se leu, cedeu à tentação de opor o que ouvia à militância histórica do partido e do próprio Lula. Esse negócio de cobrar coerência já se tornou prática cansativa, não é? Que mal há, afinal de contas, em se eleger com um programa e governar com outro? Política é assim mesmo, supõe-se. Deve ser essa mudança de opinião que fez Tereza Cruvinel, a colunista que ofereceu a recepção, afirmar, em sua coluna no jornal O Globo, que ‘em algum momento, entre o fim dos anos 70 e o início dos anos 80, o sindicalista Lula transformou-se no político Luiz Inácio Lula da Silva e foi por ele suplantado’.

É, vai ver é assim mesmo. Ao se transformar em ‘político’, tornou igualmente ‘política’ a sua militância histórica, no que o adjetivo pode ter de mais, como direi?, lábil. A Constituinte, por exemplo, foi feita não no início, mas já no fim dos ‘anos 80’, de que fala Cruvinel. Lula estava lá, entre aqueles que ele chamou de ‘picaretas’. Não propôs ali, como não o fez durante a campanha, extinguir os ditos ‘privilégios’ dos trabalhadores. Preferiu antes chegar ao poder para descobrir certas verdades. Afinal, como ainda diz Cruvinel, ‘nada como o poder para aprimorar capacidades’. O PT de Lula, diga-se, negou-se a homologar – mero protesto simbólico – o texto constitucional porque, afinal, dizia, concedia poucos direitos aos trabalhadores que o líder metalúrgico representava. Agora sabemos: tudo era, segundo o intervalo histórico escolhido pela colunista, mera etapa do aprimoramento da ‘intuição, do tirocínio e dos outros dons para a política’.

Meu encantamento atingiu o paroxismo quando, diante daquela contestação que beirou mesmo o confronto, lembraram a Lula que as férias remuneradas não são um direito universal, e ele apelou à mulher, Marisa, para obter o testemunho de seu (de Lula) desassossego quando chegava aos dez dias de férias. Ah, nada como a biografia pessoal para conferir calor e verdade ao ‘entusiasmo dos crentes e dos adolescentes’. Entendi ali que o presidente se oferecia como medida de todas as coisas, encarnando ele próprio a história da classe operária do Brasil, que, não podendo dispor de igual ‘intuição, tirocínio e outros dons para a política’, que ao menos possa sentir a mesma tentação que ele sentia de voltar ao trabalho. Embora, é fato, mas isso é detalhe, o chão da fábrica não tenha sido exatamente o trampolim do ‘estadista’. Poder-se-ia lembrar a Lula que mais da metade da População Economicamente Ativa (PEA) está impedida de sentir a angústia do retorno ao trabalho que ele sentia porque ou está desempregada ou está na informalidade. Nem tem como dividir o 13º salário em parcelas ou abrir mão da multa rescisória do FGTS porque simplesmente inexiste como mão-de-obra informal.

Pouco importa. O que interessava ao Planalto era dar esse recado a quem tinha de recebê-lo. E, não poderia ser diferente, a confusão entre a biografia pessoal de Lula e a história do país tinha de ser evocada, no que já é, afinal de contas, um método. E, já que se falou no velho Marx – peço desculpas ao PT por recorrer a autores de esquerda, que caíram em desgraça teórica -, não custa lembrar uma apreciação, digamos, psicológica que ele fez do mesmo Luís Bonaparte no já citado 18 Brumário: ‘torna-se vítima de sua própria concepção de mundo: o bufão sério que não mais toma a história universal por uma comédia, mas sua própria comédia pela história universal’.’




Arnaldo Jabor


‘Tucanos e sapos barbudos tinham de se unir’, copyright O Estado de S. Paulo, 17/02/04

‘Este artigo é sobre nada. Não que eu não tenha assunto, pois prometi a mim mesmo que nunca começaria um texto na base do: ‘Estou diante da página branca…’ Jamais usarei esse artifício de escrever sobre a dificuldade de escrever. Meu problema é outro: estão acontecendo coisas demais no Brasil, só que elas são nada. Paralisado por dívidas pavorosas, o governo do Lula fica diante do nada. E nada acontece. Agora, vamos assistir ao longo processo de desgaste de José Dirceu, por conta desse incidente vagabundo de um assessor. Vem tudo de novo que já vimos no governo de FHC, quando, por causa de uma besteira no caso Sivam, tiraram do governo o mais competente gerente da questão agrária e, por causa dos ridículos diálogos gravados no caso das ’teles’, impediram a retomada do ’desenvolvimentismo’ no BNDES. É a máquina do atraso trabalhando para manter o Mesmo.


No Brasil, todos sabem que é impossível fazer política sem acordos sujos, sem favores sórdidos. Mas, muitos reagem como se o país fosse uma ’Suécia’ utópica.


Há tempos, o professor Gianotti ousou falar o que Maquiavel tinha escrito havia 500 anos e foi crucificado, pois estaria ’defendendo a falta de ética na política’… Claro que episódios como o de Celso Daniel e esse agora são casos sombrios. Mas, não são a regra do partido. A maior novidade dos governos de FHC e de Lula foi justamente que, em vez de chafurdarem gostosamente no lodo, como sempre fizeram outros governos, buscam uma renovação ética. Os dois presidentes tratam a escrotidão fisiológica do país pragmaticamente, tentando governar com o país possível. Seu erro é que dois homens progressistas governaram, um com o apoio de ACM, outro com Sarney, e nunca se uniram. Como explicar isso? Ao contrário, nunca vimos uma oposição tão ferrenha como a do PT contra FHC. Temiam que o FHC tirasse o papel de ’emissário do deus socialista’ que seria o Lula; daí, o ódio dos sacerdotes do PT e da academia, por inveja e rancor, pois também precisavam da sagração do operário, o mito sexual da USP. Agora, que Lula virou realidade, perdeu carisma e é o amargor da pizza dos intelectuais.


O óbvio ululante O Ibope começa a mostrar a decepção do povo, apesar dos bonés de Lula dançando xaxado, e começa a aparecer a realidade terrível: o atraso do País, a rede de burrice e despreparo político é mais resistente que qualquer governante.


Ninguém vê o óbvio ululante: FHC e Lula subiram ao poder num tempo de ’aporia’ política, num tempo em que ninguém sabe o que fazer, nem aqui, nem no exterior. Os idiotas ociosos acham que os presidentes agem pouco por escolha. Será que não vêem que somos um país encalacrado num déficit mortal, com regras leoninas do FMI? O FHC, por ser mais flexível que os ideólogos do PT, ainda realizou gestos de modernização do patrimonialismo oligárquico. O PT tem mais dificuldade, pois tem a nostalgia bolchevista na alma, sem muita fé na democracia ’burguesa’.


FHC privilegiou a prática e esqueceu a ’ideologia’; Lula tem ideologia e pouca prática. Tirando o ’núcleo duro’ que, graças a Deus, mantém o feijão-com-arroz da macroeconomia, o governo está paralisado diante do que fazer. Fica aparelhando o Estado e marcando grupos de estudo e Conselhos.


Enquanto isso, o país do atraso vai roendo os petistas no poder. Os grandes ladrões públicos se regozijam com esse escândalo que irrompeu com o assessor do ’bolchevista sem causa’ Zé Dirceu que, digam o que disserem, é um progressista com o desejo de melhorar o País. Políticos que sempre pensaram em vantagens resolvem bancar prostitutas escandalizadas e pedem a cabeça dos social-democratas confusos diante da tal ’terceira via’, que ninguém sabe onde é. Foi assim com FHC e agora será com o Lula. Um udenismo malsão e hipócrita quer escangalhar a máquina do poder.


Os dois inimigos O governo atual tem dois inimigos: os idiotas de esquerda e os espertos de direita. Enquanto os reacionários tramam a volta da ’zorra’ total, os idiotas da ’esquerda pura’ não agüentam a ausência da esperança que o socialismo prometia. Por isso, buscam certezas a qualquer preço. Essa gente tem o estranho desejo de conhecer a catástrofe, pois acham que ali, no fragor da uma grave crise, haveria a aparição da ’realidade’, finalmente a revelação de uma ’verdade’. Uma grande crise pode nos levar a um ’chavismo’ caótico, que seria pretexto para se desfazer a democracia institucional e dar poder a uma direita entreguista, essa sim, brutalmente ’neoliberal’.


A verdade é que ninguém sabe como manter esse gigante solvente, pagando as contas, com credibilidade e, ao mesmo tempo, se desenvolvendo. É uma equação com 20 incógnitas e não temos aparato ideológico ou programático para resolvê-la. O governo Lula é tão atípico que gera uma dificuldade conceitual para ser avaliado. Tudo fica muito experimental, pois nosso repertório e código teóricos não dão conta desse ineditismo político. Ainda trabalhamos com conceitos que caducaram. Num debate entre ’monetaristas’ e ’desenvolvimentistas’ ninguém tem certeza de nada, fica tudo numa zona cinzenta de ’achismos’ e profecias emocionais. Assim, só resta o bate-boca ideológico: fulano diz que sicrano é reacionário e que beltrano traiu e beltrano reage acusando fulano de alienado. É um passatempo, pois, enquanto os tucanos e sapos-barbudos debatem se ’penico de barro dá ferrugem’, o País se afunda em impossibilidades reais, roído pelos dentes podres de podres poderes. A oposição que o PT fez a FHC por oito anos foi um dos maiores erros históricos do Brasil, foi a grande oportunidade perdida. Será que isso vai se repetir? FHC clamava por apoio que nunca veio em oito anos. O Lula já falou em ’união com o PSDB’. Seria essencial para o País, mas a burrice vence sempre. Sei que sou um pobre romântico, mas por que isso não poderia acontecer?’