Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jeremias, o profeta

Vila Isabel, aqui no Rio de Janeiro, sempre foi um bairro interessante. Lá não moro hoje, mas foi onde nasci. De vez em quando, ainda passeio ali pelo Boulevard 28 de setembro e mato minha saudade. Não apenas porque é um bairro com pinta de província independente, mas também porque produz tipos que só se vê em obras de ficção.

Um dia, na minha adolescência, conheci o Jeremias.

Era um rapaz inteligente e aplicado nos estudos, dotado de uma curiosidade formidável. Quem tivesse alguma dúvida, podia perguntar ao Jeremias. Ele tinha a resposta. Eu tinha o privilégio de ouvir sua prosa com freqüência porque éramos amigos. Com ele, conheci os fiordes da Noruega, o Serengeti, na África, quando nem era ainda parque de preservação animal, a pesca de caranguejos gigantes no Alasca, a tragédia de Ekaterinburg, com o assassinato da família Romanov e o incrível impacto ocorrido na região de Tunguska, na Sibéria, algo que até hoje não foi explicado. Quem quiser, pode buscar Tunguska na internet. É assunto sério.

Certa vez, quando lhe perguntei como é que ele fazia para saber tanta coisa, ele me disse, olhando para algum lugar no espaço: ‘No mundo, existem pessoas que fazem perguntas e outras que dão respostas.’ E continuou: ‘Eu escolhi fazer parte desse segundo grupo’ acrescentando: ‘E se a alguém me fizer uma pergunta cuja resposta não exista ou não saiba, eu crio uma resposta na hora.’

Desmoralização e consumo

Era assim o Jeremias, uma espécie de Google.

Um dia, Jeremias estava especialmente preocupado. Era um domingo à tarde. Parecia ter alguma coisa para dizer. Mas essa coisa, pelo que imaginei, não podia ser dita em público. Era um segredo. Quando resolveu falar, depois que a turma se dissolveu com a maioria tendo ido ao cinema na Tijuca, pediu-me para prestar atenção. Então me disse, em tom confidencial, que havia tomado conhecimento de um plano, a nível mundial, para acabar com as famílias. Segundo esse plano, dizia ele, em cada continente uma grande organização, escolhida a dedo, havia sido contemplada com uma parte do mundo. Assim, para a América do Norte, havia sido designada a revista Playboy, tendo à frente o empresário Hugh Heffner. Para a América do Sul, América Central e Caribe, o plano, segundo meu confidente, estabelecia que estava designada a empresa chamada Organizações Globo. Falou também dos outros continentes, mas vou omitir aqui.

Eu acreditei em tudo, porém perguntei como seria a implantação desse plano e qual a finalidade. Ele assumiu então uma expressão de impaciência. ‘A finalidade é o comércio, meu amigo’, disse. E continuou: ‘A família é um limitador de vendas. Quando as pessoas moram juntas, compartilham coisas, idéias e pensamentos e moram no mesmo lugar. Separando as pessoas e destruindo essa possibilidade de diálogo, eles vão criar novos mercados. A Playboy vai patrocinar um incremento da pornografia em todos os níveis porque a pornografia é um vício que dá prazer, mas desmoraliza o sujeito.’ E completou: ‘O sujeito, quanto mais desmoralizado, mais consome’.

Carência de verossimilhança

E quanto à Globo, perguntei. Ele disse: ‘Essa vai fazer um trabalho mais disfarçado.’ E detalhou: ‘Através da programação de dramaturgia, a Globo vai inserir sutilmente o gosto pelo sexo desenfreado, a banalização do relacionamento familiar com o surgimento do marido de novela, ou seja, aquele cara que vê mas finge que não vê; que permite que sua filha faça sexo com todos os namorados e que sua mulher faça sexo com qualquer um.’ E continuava falando: ‘Quanto às mulheres, estas serão reduzidas a simples objetos sexuais. Personagens femininos serão apresentados como cabeças ocas, sempre lânguidas e apaixonadas por qualquer um, por qualquer coisa.’ ‘E mais, rapaz’, falava e gesticulava, ‘o ambiente nas novelas será uma loucura’ – na época, não havia o verbo transar e ele fazia gestos significativos – ‘vai ser todo mundo com todo mundo, entendeu? As pessoas vão passar a pensar’ – agora já quase falando no meu ouvido – ‘que aquilo tudo é coisa normal, que todo mundo pode fazer.’ E concluía patético: ‘Vai ser o fim, bicho’, gíria da época, ‘vai ser o fim.’

Na ocasião, confesso que ouvi essa exposição com o maior respeito. Talvez, já que eu não conhecia o conceito de mensagem subliminar, eu tenha achado que o argumento carecia de verossimilhança. Entretanto, fiquei pensando em como essa informação teria chegado até meu amigo e onde teria sido feita essa reunião em que esse plano teria ficado decidido.

Respostas aos ‘ensinamentos’

O tempo passou.

Recentemente – para dizer a verdade, ontem – eu estava em companhia de duas belas garotas, batendo um papo. Enquanto elas sorviam um suco de clorofila eu fazia elogios à Globo a respeito de um programinha que assisti na semana passada. Uma comédia chamada Guerra e Paz. Eu dizia que fiquei realmente impressionado com o desempenho de Marcos Pasquim e Danielle Winits. Incrível. Movimentação perfeita, figurino impecável, direção corretíssima, enredo coerente, tudo com a maior qualidade.

As duas não se impressionaram com o que falei e ainda cometeram a indelicadeza de dizer que já haviam assistido, assim como quem diz que não viram nada demais.

Um dia, as mulheres ainda vão aprender que é mais vantajoso deixar o homem na ilusão de que ele é o maior, que sua opinião é boa. Afinal, é a elas que é dirigido todo o resultado. E um homem, seguro de que é admirado, tem um desempenho muito melhor do que outro que está com a sensação de que o que fala não serve para nada.

Um dia elas aprendem.

À parte esse desabafo pessoal, sigo narrando. A conversa seguiu com elas procurando lembrar outros programas da Globo que teriam visto e gostado. Citaram A Grande Família, Casseta e Planeta, Zorra Total, mas empacaram em um que não conseguiam lembrar.

Quando deram aspectos do formato, eu disse Dicas de Um Sedutor, no que fui aplaudido por minha memória. Na seqüência, perguntei qual o motivo do tal programa ser uma unanimidade entre as duas. Uma delas não soube expor seu julgamento, dando a entender que assistia por assistir. Já a outra foi objetiva: ‘Porque tem muitos ensinamentos importantes.’

No mesmo momento viajei ao passado, quarenta anos atrás, até minha conversa com Jeremias.

Quando alguém assiste a um programa humorístico, criado para fazer rir, e confunde com um documentário educativo, a coisa é grave. Significa, principalmente, que o telespectador que assim pensa vai aplicar em sua vida aquilo a que assistiu. E, pior, vai esperar das pessoas de sua relação, respostas compatíveis àqueles ‘ensinamentos’.

De alguma forma, parece que Jeremias tinha alguma razão.

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Estudante, Nova Iguaçu, RJ