O Globo, como o próprio Rio, está tonto com a criminalidade. No sábado (16/4), mais um capítulo da novela da jovem de 17 anos, moradora de Ipanema, que foi viver com o namorado, suposto traficante, no Morro do Turano, no Rio Comprido, Zona Norte. Todos os elementos de um problema familiar estão presentes na reportagem, mas o jornal entra pela senda de uma sociologia que é pura manifestação de preconceito.
Veja-se a pérola, sob o título (errado): ‘Mais quatro garotas de classe média no tráfico’ (não há uma só palavra na reportagem que envolva especificamente garotas com o tráfico):
‘A adolescente de classe média da Zona Sul retirada anteontem do Morro do Turano por policiais (…) não estava tão distante de sua classe social. Investigações da polícia, iniciadas ontem, descobriram que pelo menos outras quatro garotas também moram no morro’.
Do enunciado se depreende que se não fosse ‘de classe média da Zona Sul’ não seria notícia. Ou seja: não sendo ‘de classe média da Zona Sul’, pode morar no morro, com bandido etc.
Parece uma caricatura do Jornal do Brasil em seu período terminal de jornal da ‘ipanemia’ (a doença foi diagnosticada por Caetano Veloso nos idos da década de 1960, em artigo no Pasquim, mas a fase terminal do JB começou uns dez anos depois).
A Folha de S.Paulo repetiu o padrão. ‘Por namoro, jovem troca Ipanema por morro’. A reportagem traz inacreditáveis conjecturas estético-afetivas do delegado Ricardo Dias Teixeira: ‘Não acredito que tenha sido o Berola, que é muito gordo e feio’.
Leandro Desábato, você não está sozinho no preconceito. É preconceito a favor da classe média e da Zona Sul do Rio, contra gordo, contra feio…
A reportagem do Estado de S.Paulo, mais sóbria, não escapa do título: ‘De Ipanema ao morro. Por amor’, com esse ponto final que estão insistindo, trinta anos depois, em ressuscitar. A antitécnica do título no Estadão é atualmente um capítulo à parte no jornalismo brasileiro.
Mudança de padrão
A redação canhestra da reportagem do Globo limita grotescamente a cinco a população de garotas do morro (‘…descobriram que pelo menos outras quatro garotas também moram no morro’). A não ser que a designação ‘garotas’ tenha a ver com uma classe social determinada.
Além disso, a reportagem julga e condena quatro homens, três com direito a foto, que a competente polícia carioca afirma serem traficantes, bandidos. Não há menção a processo em que tenham sido condenados. Vale a palavra do delegado. O mesmo que isentou Berola por ser ‘gordo e feio’.
Outra derrapada do Globo no perigoso terreno da crônica policial (ainda no dia 16, sábado) foi reproduzir recomendações da polícia para pessoas vítimas de falsos seqüestros anunciados por telefone. Nesses casos a polícia invariavelmente dá conselhos abilolados, que só cabem numa lógica ginasiana. Mas os jornais embarcam. Exemplos: ‘Instalar um identificador de chamadas no telefone para ligações futuras’ (prepare-se para a inevitável volta do bandido); ‘tentar gravar o telefonema’ (tão fácil, não é?); e assim por diante. Ah, o varejo…
No domingo (17/4), o Globo ganha pontos com uma reportagem séria sobre a incompetência da polícia para realizar inquéritos relacionados com homicídios na Baixada Fluminense. E mostra, sem espalhafato, como uma equipe policial tida como competente, na região desde o fim do ano passado, começa a mudar o padrão:
‘Os delegados contaram que já começaram a receber denúncias diretamente pelo telefone da delegacia, o que praticamente não acontecia mais, já que os denunciantes preferiam o anonimato do Disque-Denúncia por falta de confiança na polícia’.