Há textos jornalísticos que deixam ao leitor uma dúvida: são para rir ou para chorar? Um bom exemplo está na matéria publicada à página 4 do jornal curitibano Gazeta do Povo em sua edição do dia 18 de maio de 2007. O jornalista Miguel Portela assina os 4 parágrafos de um texto tragicômico que começa com uma incriminação certeira e termina de forma inesperada, com o sumiço do incriminado.
O título é direto e claro: ‘Aluno põe fogo em carro de professora’. Fato ocorrido no Colégio Estadual 14 de novembro, que fica na cidade de Cascavel, oeste do Paraná. Ao lê-lo, o leitor tem a trágica consciência de um fato grave. Um ato criminoso contra um bem de uma professora perpetrado por um de seus alunos que, pelo enunciado, já estaria identificado.
O lead traz uma sinistra constatação: ‘Os casos de intimidação e violência contra professores já não são novidade nas escolas em Cascavel’. Dá conta ainda que o carro estava no estacionamento do colégio e que um professor apagou as chamas. Até aqui, o leitor segue a linha de raciocínio proposta pelo título e aprofundada emocionalmente pela comprovação textual da renitência dos casos de vandalismo e violência que os jovens estudantes cascavelenses têm praticado contra seus mestres. Sem dúvida, uma tragédia que mergulha o leitor em um estado de revolta e de comiseração pelos destinos da sociedade em que vive.
Sai o culpado, entra o suspeito
Mas, surpresa! A última linha do lead quebra todo o encanto trágico, toda a trama dantesca que vinha se configurando. O jornalista, inesperadamente, escreve: ‘Um estudante é o principal suspeito’! O leitor pode estacar a leitura e gritar, ultrajado: ‘Como assim, o principal suspeito? O título da matéria dizia outra coisa!’. E certamente correrá para o restante da narrativa, no afã se agarrar à esperança de não ter sido feito de bobo nas primeiras linhas da matéria. Mas foi.
O texto informa que a professora crê ter sido a explosão do seu veículo a intenção do aluno – que o leitor não tem certeza se já está identificado e preso, como dizia o título, ou se é apenas um personagem virtual, inventado para dar sentido à trama. Um pano em chamas, encharcado em álcool, teria sido posto no tanque de combustível. O leitor descobre que, apesar da gravidade do fato, a professora se recuperou do susto e trabalha normalmente. E aqui se encerra o relato do delito.
Pirâmide ‘desinvertida’
O restante da matéria é composto por aquele lixo que os jornalistas do jornal curitibano costumam deixar para cobrir os espaços vagos pela ausência de anunciantes: o contraditório, o ‘outro lado’. Porém, eis que aí, de onde nada se esperava, surge o único relato coerente do texto. A diretora do colégio tem finalmente voz e não nega que possa ter sido um aluno o incendiário, mas aventa a hipótese do ato ter sido praticado por algum invasor, já que os muros da instituição são muito baixos. Para ela, ‘quem fez isso escolheu um carro aleatório para praticar esse ato de vandalismo’. Outra hipótese plausível.
A diretora conta que não há qualquer caso de agressão a professores registrado pela escola e que são poucos os casos de indisciplina ocorridos no ano. Quer dizer, exatamente o contrário do que dizia o título e as primeiras linhas do lead. E mais: o colégio está na lista de reformas do Núcleo Regional de Educação, o que inclui a elevação dos muros. E, assim, sem mais nem menos, tudo acaba bem. O que tinha começado terrível acaba com final quase feliz.
Não se sabe quem foi o suposto aluno delinqüente citado no título. Não se sabe nem se ele existe. No fim, percebe-se que pode ter sido qualquer um, qualquer pessoa, qualquer professor, qualquer aluno, inclusive a diretora, o professor bombeiro, a dona do carro ou o próprio jornalista. Não deve estar descartada a hipótese dos autores deste texto terem cometido o ato vândalo.
O texto nos mostra um caso típico de ‘pirâmide desinvertida’, no qual o ‘outro lado’ é muito mais completo e interessante do que o lead – o verdadeiro lixo que não precisaria ter sido escrito. Pelo menos, mais coerente e razoável. Ou a diretora tinha um texto pronto na cabeça, ou conhece a realidade da escola suficientemente para tornar o tema mais interessante e complexo, mais instigante do que a banalidade contida no lead. Este é composto pelos lugares-comuns, pelos fatos-ônibus ‘cresce a violência’ ou ‘alunos são perigosos, quase delinqüentes’ etc. Alunos do ensino público, diga-se.
Paradigmas e preconceitos
Para entender a confusão da matéria, há uma consideração de ordem teórica e de referência ética a ser feita. Maurice Mouilland, no excelente livro, que assina parcialmente, intitulado O Jornal – da forma ao sentido, mostra como um jornal é um espaço no qual há uma programação prévia do acontecimento. Em outras palavras, a imprensa cobre não o fato, mas o paradigma, um padrão de interpretação do acontecimento social.
Na matéria que abordamos, está posto de antemão que há uma guerra entre alunos e professores em Cascavel, que aqueles intimidam e agridem estes, e que, por isso, ‘só pode ter sido’ um aluno o autor do delito. Pior: alunos da escola pública, supostamente pobres, pessoas que não estão nos colégios que preparam as elites, virtuais agressores, delinqüentes em potencial. Seria mais honesto se o jornalista iniciasse avisando que falaria de um tema ligado a uma certa gentalha…
Essa consideração abarca o campo teórico do jornalismo e também o campo da ética. Por um lado, problematiza a prática diária do repórter, que parece já sair de casa para ir ao jornal com a matéria que vai escrever pronta, mesmo sem saber qual fato a fundamentará. Por outro, denota haver uma idéia prévia sobre o que é o aluno da escola pública ou sobre o que é a escola pública. Afinal, como lembra a professora Cremilda Medina no seu clássico Notícia – um produto à venda: ‘Na realidade, o título sempre deixa transparecer a posição opinativa do grupo empresarial, mesmo aqueles que se dizem imparciais’. E esse grupo já tem deixado claro que compreende a escola pública como muito mais passível de críticas ferozes do que de elogios ou de reconhecimento.
Birra indelével
Em nome de um suposto e mal definido compromisso com o bem público, a Gazeta do Povo pauta suas coberturas pela constante tragicidade das condições do ensino público no Paraná. Não reconhece qualquer iniciativa positiva das autoridades dessa área. Um exemplo, outro exemplo, esteve no mesmo dia 18, na tela da Rede Paranaense de Televisão (RPC), filiada ao mesmo grupo do jornal citado.
Uma determinação judicial para que a Secretaria de Educação do Estado conseguisse vagas para aproximadamente 200 alunos que haviam ficado fora da escola na cidade de Colombo – região metropolitana de Curitiba – teve repercussão em uma suíte que informava que nada havia sido feito até aquele momento. Omitiu-se que a sentença havia sido dada dois dias antes e que metade desses alunos já tinham sido identificados e, ao que tudo indica, alojados em salas de aula.
Trata-se, aparentemente, de uma birra indelével desses veículos com o governo do estado. Um constante estado de mau-humor que, dizem alguns, poderia ser delida com verbas publicitárias.
O fato é que, no intento de atingir o governo do estado, com a intenção de continuar essa briga boba e cega, o grupo Gazeta/RPC denigre não apenas a instituição Escola Pública, mas, principalmente, todos os alunos, professores e funcionários que a definem e que a constroem no cotidiano. Ao acusar irresponsavelmente um aluno por um suposto incêndio criminoso no carro de uma professora, o jornal coloca fogo em toda a escola. Levanta suspeitas infundadas, insufla a desconfiança, age com deslealdade, prejulga. Isso, sim, mais propriamente, pode ser chamado de violência. E coisas desse tipo, certamente não dão motivos para rir.
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Respectivamente, psicólogo, jornalista, mestre em Comunicação e Cultura; estudante de História