Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornal sob o ponto de vista do repórter

Ponto sem nasce de um vazio. Primeiro veio o Sem (um jornal pequeno, provavelmente teria muita coisa faltando). Depois apareceu o ponto e ficou interessante ver como ele poderia servir para marcar um contrasentido do pontocom da internet.

Sua concepção agregou várias discussões: uma delas – a palestra do jornalista argentino Tomás Eloy Martinez (traduzida por José Meirelles Passos, então correspondente do Globo, em Washington) intitulada ‘Em busca de um jornalismo para o século 21’, apresentada em 1998 na Conferência da Sociedade Interamericana de Imprensa – apontava o texto aprimorado, humanizado com o ponto de vista do repórter, como caminho dessa busca. Depois vieram discussões no Núcleo de Estudos de Jornalismo do Curso de Comunicação da Universidade Federal do Mato Grosso e, principalmente, a constatação de que no ambiente online o tempo e a notícia caminhavam juntos.

O .Sem começou a circular em 25 de outubro, no Mato Grosso. Saímos com 1.800 assinaturas, vendemos 100 exemplares em Brasília e cerca de 200 exemplares em São Paulo. O jornal agora está sendo ajustado para ser mensal. Sua próxima edição vai para a rua em 5 de dezembro e, a partir daí, circulará todo dia 10 (janeiro fevereiro, março e abril). O projeto prevê um novo ajuste a partir da 6ª edição.

Se Benjamim Franklin, na Gazeta da Pensilvânia, recebia informações por meio de cartas, que vinham de navio da Europa, para publicar seu ‘noticiário quente’ uma semana depois, hoje presenciamos o fato e isto nos induz a comprar o jornal do dia seguinte. Tomo como base o 11 de Setembro: praticamente todo mundo viu ao vivo o segundo avião bater na torre do World Trade Center. Acompanhamos o desdobramento do fato pelos plantões de jornalismo ao vivo da TV e com um olho na internet e, mesmo assim, no dia seguinte fomos comprar o jornal na banca em busca da informação quente.

Fidelizar idéias

Com o surgimento da web, o jornal impresso passou a ter o papel de alinhavar a realidade. É como se o jornal passasse a ter a responsabilidade de materializar e registrar ‘cartorialmente’ esta realidade e, ao mesmo tempo, gerar sentido para a compreensão da enxurrada de informações que, sem a devida interpretação, acaba não servindo para nada.

O importante não é mais a descrição do fato, mas o grau de complexidade que se usa para interpretá-lo. No caso, substituímos a segmentação tradicional das editorias pela abordagem do fato a partir de um ponto de vista definido que vai encontrar eco no leitor. Com isso. o jornalismo impresso define um público com tendência a fidelizar idéias e relega o papel informar para o rádio (difusor da informação) e para a internet e seus noticiários online; esquiva-se de massificar, deixando esta tarefa para a TV.

Compromisso com o leitor

Partindo desse conceito, o jornal (e o .Sem) abandona a área geográfica da notícia para, transversalmente, buscar a paisagem daqueles com os quais coincide em pontos de vista, avançando a discussão sobre temas específicos com uma abordagem genérica. É um pouco na contramão daquilo que se procura fazer, mas que recupera o papel do jornalista como intérprete da história e sua importância como elucidador da sociedade.

O .Sem também está recuperando um conceito da venda por assinatura, com o intuito de fidelizar o leitor e dividir com ele a responsabilidade de bancar os custos e os salários dos jornalistas. Por ser uma publicação pequena (12 páginas e tiragem de 3 mil exemplares), seu crescimento está pautado para ocorrer mediante a capacitação dos repórteres que forem se agregando ao projeto – e para que não encarem a pauta como uma ordem de serviço perante a qual eles não têm responsabilidade alguma. Quando o repórter assumir a pauta estará assumindo um compromisso com o leitor, e não com o editor.

Abaixo está reproduzido o texto do primeiro editorial do .Sem.

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Esta é uma publicação escrita por linhas tortas. Tem a pré-potência de organizar signos e propor uma ampla troca de pontos de vista. É um instrumento de reflexão para alimentar o debate e a circulação de idéias.

Ela se diferencia por abandonar o pragmatismo, maldito, na elaboração dos jornais. Visa recompor um caminho da Imprensa, de valorizar a liberdade de expressão. Também visa distanciar-se da prática do jornalismo surgida no final do século 19 e início do século 20. Nesta época, com a evolução das gráficas para a rotativa a notícia passou a ser vista como uma mercadoria.

Benjamin Franklin (1) em 1729 já fazia da Gazeta da Pensilvânia um negócio. O jornal passou a ser muito mais do que um difusor das idéias (do Iluminismo) como até então havia sido. Franklin buscou na publicidade o financiamento para fazer frente aos seus custos.

Na virada do século 20, ainda nos Estados Unidos, Joseph Pulitzer (2) e William Randolf Hearst (3) alteraram significativamente a estética e a mística da notícia. Animados com o modelo de produção em escala, além de tratar a notícia como uma mercadoria deram uma nova cor ao jornalismo, levando a extremos o jornal como negócio. Na busca de ampliar as vendas, ‘inventaram’ aquilo que, no Brasil, Alberto Dines (4) batizou de imprensa marrom (em 1960) e que o dicionário do Aurélio define como ‘a que explora o sensacionalismo, dando larga cobertura a crimes, fatos escabrosos e anomalias sociais’. Eles visavam o dinheiro miúdo (centavos) no bolso do seu leitor de baixa renda.

A prática de Pulitzer e de Hearst ainda pode ser vista no jornalismo impresso atual, como se o tempo, esta perversa invenção da idade moderna, não tivesse passado. Como se não tivesse havido os avanços tecnológicos do século 20

O jornal de hoje ignora as discussões levadas avante no jornalismo com Robert Park (5), nos EUA e Otto Groth (6), na Alemanha. Ignora novos modos de pensar inaugurados por Albert Einsten (7) e aprofundado por Norbert Wiener (8) e Ludwig von Bertalanffy (9), e ignora também, que na década de 90 (1998), apareceu o fenômeno online, que alterou a concepção do ‘quando’ da notícia. No jornalismo, preferiu-se apostar na extinção da leitura do que pensar na nova condição para os jornais impressos e tudo o que eles representam.

Hoje o fato e a notícia acontecem ao mesmo tempo. Esta evolução passou a exigir uma nova discussão sobre o conceito de jornalismo impresso, o de revelar pontos de vista por meio da interpretação do fato, para que a informação jornalística não se torne fator de entropia social.

É isto que nos propomos fazer nesta publicação. Visamos valorizar o tempo do leitor expondo pontos de vista que lhe serão úteis para entender o mundo em que vive – como o fizeram os pensadores desde o Renascimento e, que a partir do jornal, delinearam a modernidade.

O que queremos é desmistificar a idéia (falaciosa) de que hoje em dia não se tem mais tempo para ler. Inspiramo-nos no amigo de Rui Barbosa, Willian T. Stead, que naufragou com o Titanic; John Hersey e Eiji Yoshikawa.

Stead, editor da Gazeta de Pall Mall , ao publicar a reportagem ‘Tributo à moderna Babilônia’ ganhou, além de uma condenação de dois anos de prisão, a satisfação de ver seu jornal esgotar a tiragem e passar de mão em mão e ser vendido no câmbio negro, por até 15 vezes o preço de capa. Hersey, com a reportagem ‘Hiroshima’, fez com que os 300 mil exemplares da revista The New Yorker de 31 de agosto de 1946 se esgotassem e permitiu que fosse criado um mercado paralelo que elevou, também no câmbio negro, o preço de US$ 0,15 da capa a US$ 15 e até US$ 20. Yoshikawa, ao relatar a saga humanizada de Musashi, numa sensacional reportagem publicada no Ashai Shimbum, entre os anos de 1935 e 1939, habilitou a história para ser publicada em formato de livro com cerca de 1880 páginas, em dois volumes, para vê-la tornar-se uma das histórias mais lidas do mundo, alcançando em 1980 a marca dos 100 milhões de exemplares vendidos.

Notas

(1) Benjamin Franklin – O criador do formato editorial como o conhecemos hoje, com divisão de secções e editorias. Ele disse: ‘Escrevam algo que valha a pena ler ou façam algo que valha a pena escrever’.

(2) Joseph Pulitzer (1847-1911) – Húngaro nacionalizado norte-americano criou o jornal New York World, que lhe rendeu fortuna com a venda de exemplares na rua. Levou a extremos a sua condição de jornalista e o exercício do poder, não raro confrontando-se com seu principal concorrente.

(3) William Randolf Hearst – Criou o New York Journal e foi o principal concorrente de Pulitzer. Teve sua vida contada no filme Cidadão Kane, um clássico dirigido por Orson Welles. A concorrência dos dois jornalistas incluía a contratação de gângsteres para explodir os caminhões de distribuição dos jornais.

(4) Alberto Dines – Ícone do Jornalismo brasileiro, quando editor do jornal carioca Diário da Noite fez uma campanha contra jornais que viviam de chantagem, achaques e maledicências. Ao divulgar que uma notícia teria levado um cineasta ao suicídio, resolveu qualificar tais publicações com um americanismo ‘imprensa amarela’. Publicaria de manchete que ‘A imprensa amarela teria provocado o suicídio do jovem’. Seu chefe de reportagem, Calazans Fernandes, mandou mudar a cor, tirou o amarelo e pôs marrom. A partir daí o jornalismo de qualidade duvidosa ficou conhecido como imprensa marrom.

(5) Robert Ezra Park – Jornalista que ao ingressar na universidade, em 1913, muda seu modo de encarar o jornalismo e introduz a pesquisa sociológica em suas matérias como forma de dar formato aos grupos étnicos de imigrantes nos Estados Unidos. Com isso ele dá caráter científico ao jornalismo e afasta a idéia de publicidade social praticada com subsídio do Estado para fazer propaganda governamental. Foi um dos criadores do centro de pesquisa que ficou conhecido como a Escola de Chicago.

(6) Otto Groth (1875-1965) – Discípulo de Max Weber foi jornalista e professor no Instituto de Jornalismo de Munique, na Alemanha. Desde 1910 dedicou-se a buscar as bases para dotar os estudos de jornalismo de um caráter científico.

(7) Albert Einsten – Físico, criador da Teoria da Relatividade (1905).

(6) Norbert Wiener (1894-1964) – Professor de Matemática do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) foi o criador da cibernética, ciência interdisciplinar que iria influenciar toda a Teoria de Sistemas e praticamente o restante do século 20.

(9) Ludwig von Bertalanffy (1901-1972) – Biólogo nascido na Áustria, foi professor da Universidade de Alberta, em Edmonton (Canadá). Crítico da visão cartesiana do universo, criou, em 1945, a Teoria Geral dos Sistemas – ‘um instrumento apropriado para lidar com a complexidade organizada e as idéias comuns às várias disciplinas ou ciências’.

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Jornalista, editor do .Sem