LÍNGUA PORTUGUESA
Palavras familiares
‘O verso de um lindo poema cristão, o Pater Noster (pai-nosso), transformado em prece, resume o conceito de que o pão deve ser pedido: Panem nostrum quotidianum da nobis, hodie (o pão nosso de cada dia nos dai hoje).
A palavra ‘cotidiano’ entrou no português ainda no primeiro milênio e era escrita de diversas formas: ‘cotidião’, ‘cotidiao’ e ‘cotidiano’. Consolidou-se a última com a variante ‘quotidiano’. Todas têm o significado de parte, quota. Sua origem remota é o advérbio latino ‘quot’, quanto. No latim era escrito de duas formas: ‘cottidianus’ e ‘quotidianus’. Em plena Idade Média, os sofrimentos cotidianos, o maior dos quais era a fome, vinham no varejo, até que chegasse a felicidade eterna, que viria no atacado, quando o homem estivesse ‘defunctus’, pronto.
Esses resquícios religiosos iluminam a língua portuguesa. A família clássica – pai, mãe, filhos – mudou de significado a partir da Sagrada Família: José, o pai; Maria, a mãe; Jesus, o filho. E apenas dois avós permaneceram na memória cristã: Joaquim e Ana, pais de Maria.
Mas a família romana não era concebida assim, muito menos com filho único. O Império precisava de expansão e ninguém pensava em controle de natalidade. Os deuses pagãos ilustram outros arquétipos. Deuses do amor, do erotismo e da fertilidade eram reverenciados em altares, bosques e ruas ao lado de divindades que protegiam a agricultura, os vinhedos, os rios, os mares etc. Aquele povo prático recheou de metáforas agrícolas e náuticas as palavras do cotidiano, a ponto de a própria palavra ‘cultura’ significar originalmente cultivar a terra, sentido depois transposto como metáfora para que significasse também cultivar o espírito.
Família veio do latim ‘familia’, conjunto de escravos, cuja raiz está presente em ‘famulus’, escravo, criado. O latim medieval ‘sclavus’ veio do grego bizantino ‘sklábos’, denominação genérica de numeroso povo trazido para cativeiro, conhecido como ‘slavus’, eslavo. O criado tinha outra origem: como a palavra indica, tinha sido ‘creatus’, criado, naquela ‘familia’, pertencente a um ‘dominus’, senhor do ‘domus’, a moradia, o conjunto de habitações onde todos moravam, origem remota de ‘domicilium’, local em que residiam, presente ainda hoje quando declaramos aos poderes do Estado que podemos residir onde queiramos, mas que nosso domicílio deve ser apenas um e é ali que seremos procurados para obrigações e impostos.
O pai, a mãe e o Estado arrebataram assim funções divinas. Como o latim tem casos e declinações, foi o acusativo ‘patrem’, de ‘pater’, que nos deu ‘padre’, ‘pae’ e finalmente ‘pai’. Mãe, igualmente, veio de ‘mater’, mas pela declinação ‘matrem’.
O que mudou foi que o ‘panem nostrum quotidianum’ foi repartido com o ‘fâmulo’, agora também ‘frater germanus’, irmão legítimo, pois o Pai passou a ser um só: àquele a quem deveria ser pedido o pão de cada dia. As famílias, reunidas, formaram as primeiras comunidades cristãs, onde era tudo em comum, forma avançada de socialismo avant la lettre no século 1, que entre os séculos 17 e 18 foi aplicada no Brasil meridional: a experiência durou 150 anos e serviu de mote ao filme República Guarani, de Sílvio Back, e a meu romance A Cidade dos padres.’
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