Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo declaratório embota leitor

A televisão já nem repercute o assunto e os jornalões paulistas, Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo, ainda tentam apimentar o fato ao publicar as queixas, naturalmente antagônicas, dos lados envolvidos, parentes da moça violentada e dos rapazes acusados pelo estupro ocorrido em 10 de dezembro de 2004, em Campinas. Começa a preocupar a posição da imprensa, que toma as dores dos moços acadêmicos ao noticiar que a arma da defesa é a revelação de que a jovem estaria consciente e teria até mesmo assediado os rapazes. O público entra na catraca de sempre: os contra e os a favor. Ninguém cresce, exceto a bolha do embotamento mental, cada vez mais espessa.

Falta mais do que debate, falta a informação básica e óbvia: estupro é crime, se a vítima estiver consciente ou não. E dois, três ou mais rapazes ‘brincando’ seminus com uma única moça nua num banheiro é um estupro sem a menor dúvida, é uma violência sexual, é a utilização do corpo feminino como objeto de prazer desvinculado do seu valor humano. Não ocorreu aos repórteres perguntar aos advogados de defesa se uma eventual consciência da moça descaracterizaria realmente o estupro diante das condições apuradas – dois ou três homens seminus com um mulher nua no banheiro?

Digamos que não fosse uma pessoa a vítima, que fosse um animal, uma ovelha, uma égua vitimada por três homens. Não seria crime ainda assim? Que jornalismo é esse que só publica as declarações, que não enxerga um palmo à frente da resposta pronta do entrevistado?

Da fantasia à trágica realidade

Em vez de ficar preocupada em arranjar informações do delegado, falações dos parentes, declarações dos advogados, seria mais interessante para a sociedade que a notícia de desdobrasse em pautas que servissem de acesso ao conhecimento sobre o tema e o entorno dele em nossa atualidade. Clarear as idéias da sociedade sobre o machismo que se esconde nessas questões, um machismo já conhecido e muito bem defendido por nossa Justiça – que sempre contou com os panos quentes da grande mídia –, seria apenas um bom começo para sairmos do tom fofoqueiro que agora ataca também a notícia importante, refletora de nossos comportamentos sociais.

Poderíamos ter uma fileira de matérias interessantes, que começariam no crime de estupro, propriamente dito, e terminaria não muito longe da cátedra escolar, onde meninas de 12, 13 anos, incentivadas por um mercado midiático corrosivo, se comprazem em jogos de sedução perversa, explícita, incentivadas muitas vezes pela própria família, já há muito embaçada pelos truques do marquetismo.

A TV, a imprensa e as rádios não vinculam a hipervalorização do corpo como produto de consumo à banalização da sexualidade e seus desdobramentos. Seria até natural, se não fosse crime, que jovens criados para ver a mulher como objeto a tratem assim; como seria esperado, se não fosse tão doloroso, uma jovem confundir-se em suas fantasias antes de deparar com a trágica realidade de um estupro.

A cura pela palavra

Atrás do estupro de Campinas há muito o que se pensar, muito o que se debater. É uma pena que nossa mídia não deseje ir mais fundo do que equilibrar-se na nata das últimas declarações oficiais. E sempre com a tendência a apoiar os mais fortes, no caso os infelizes rapazes, que se juntaram, fotografaram, assistiram, espiaram e entre todos os indiretamente envolvidos, por volta de cinco, não houve um que dissesse: ‘Não façam isso, vamos protegê-la, chamar alguém para ajudá-la, ela não pode estar consciente se deixando machucar, não podemos abusar de um ser humano dessa forma.’

Uma mídia inteligente, reflexiva, envolveria a sociedade de uma maneira benéfica, poderia até evitar novos crimes como esse. Mas ficamos na notícia, no disse-me-disse das declarações oficiais. Quem ainda agüenta as malditas declarações oficiais? Para que servem afinal as declarações se nada a elas é agregado, nem realidade, nem situação histórica, antropológica, nada mais do que fatos a se repetirem doentiamente, justamente porque não são tratados, não são curados?

Sempre é bom lembrar o fato de que a cura pela palavra já foi descoberta há mais de 100 anos. É incrível como o jornalismo tem sido capaz de operar num nível tão baixo, reduzindo o conhecimento que poderia divulgar a banalidades factuais, mesmo quando o assunto pede pelo amor de Deus para ser refletido.

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Jornalista em Florianópolis