Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo tem egrégora

Há poucos dias, recebi um e-mail da senhora Regina Helena de Paiva Ramos que está preparando um livro sobre os jornalistas de São Paulo nos anos 1950. Nele, me pedia dados mais específicos sobre a personalidade e vida profissional de minha mãe, Neli Dutra.


Erudita, escritora, jornalista e professora, roteirista, editora, ensaísta e publicitária bissexta, Neli foi uma figura inquieta e atenta. Nos anos 1960 adaptou A Tempestade de Shakespeare para a cultura Iorubá. Como se fosse tarefa simples, mixou o refinamento de um povo (dito culto) às tradições de outro (dito primitivo). O mito os unia.


Lembro do batuque incessante da Lettera 22 pelas madrugadas no bairro do Paraíso, em São Paulo. E o monte de papéis pelo chão na manhã seguinte. O espetáculo estreou no Teatro de Arena.


Quando trabalhou no Correio Paulistano, tinha orgulho duplo em me carregar para o seu trabalho. Exibia o filho. Exibia ao filho, o ambiente profissional, único.


Enquanto escrevia, eu andava pela redação. Quieto e respeitoso, aos 8 ou 9 anos, ficava assuntando pelas mesas, fascinado pelo ruído das máquinas de escrever. Sentia pela sala um clima que me obrigava a reverenciar a atividade.


68, tempos dos festivais


Somente anos mais tarde aprendi o significado da palavra ‘egrégora’. Segundo a Wikipédia, ‘quando várias pessoas têm um mesmo objetivo comum, sua energia se agrupa e se `arranja´ numa egrégora. Esse é um conceito místico-filosófico com vínculos muito próximos à teoria das formas-pensamento, onde todo pensamento e energia gerada têm existência, podendo circular livremente pelo cosmo’.


Então, lá ficava eu pela redação absorvendo a egrégora reinante no ambiente mágico, quase religioso. Não era raro que um jornalista parasse no meio do seu texto, chamasse o companheiro do lado e, antes de terminar seu trabalho, achasse um jeito de discutir minutos a fio uma ou outra forma de se expressar. Testemunhei grandes discussões filosóficas assim. Também era normal que, no meio de um texto, alguém soltasse uma grande gargalhada e, imediatamente, dividisse o motivo dela com os outros. As magias mais mágicas se fazem coletivamente.


Pela vida a fora, em função do trabalho de meu pai (que era ator de cinema) e de minha mãe, e até depois, por meu trabalho musical, conheci muitas redações de jornais e revistas. Conheci muita gente e, fosse onde fosse, a tal da egrégora se apresentava.


No Correio do Povo, em Porto Alegre, quando ia com meu pai buscar o Mario Quintana para um papo regado a café e quindins, no Jornal do Brasil, com o meu padrinho Aníbal Machado visitando o Drummond. Lembro até da Última Hora, em São Paulo, quando o Samuel passou por lá pela última vez. Em 1968, tempos dos festivais da Record, no Jornal da Tarde, quando eu ia dar entrevistas e encontrar o Adonis, o Melquíades, o Fernando Morais, a Helô Machado.


90 Minutos e a Realidade


Sem frescuras, respondia às perguntas e a gente marcava uma cervejinha ali no bar do lado do Hotel Jaraguá para ‘completar’ a entrevista. Isso acontecia com todos os artistas. Cansei de ver a Ruth Escobar, o Leonardo Villar, a Rosa Maria Murtinho, o Anselmo Duarte, a Marília Pêra, um monte de artistas, lá no JT. Todos pareciam um povo só. Ficou a impressão de que a atmosfera era a mesma em todas as redações.


Agora, de bate-pronto, diria que havia respeito pelo trabalho, pelas pessoas, pelos entrevistados, pela ‘forma’ de noticiar e, mais que tudo, era uma tarefa coletiva, trabalho de equipe.


Lá pelas tantas, tornei-me documentarista e, automaticamente, também jornalista, e a TV era o mercado mais imediato. Mesmo que ela não me interessasse diretamente, o fato de, no documentário, haver a possibilidade de entregar um produto fechado, sem interferência de ninguém, vender um pensamento mais autoral, me atraía muito. E enquanto assim foi, eu fui junto.


Na TV, trabalhei com o Sérgio de Souza, e a redação do programa do Sérgio (90 Minutos) tinha egrégora. O pessoal da revista Realidade fedia a egrégora – o Hamilton, o Myltainho, o Bahia.


Nunca dar o ‘nome aos bois’


Sempre meio cigano, andei fazendo outras coisas na TV, dirigindo jornalísticos, musicais, comerciais, até que, quando estava morando longe, a TV Manchete me chamou para o Rio de Janeiro. Fiquei um ano e pouco dirigindo o Clodovil (mas isso é outra história…) e, por convite do Narciso Kalili, fui para a Globo.


E era muito estranho. A redação do Globo Repórter era desegregoriada, parecia a linha de produção da GM. Um monte de gente: repórteres especiais, cinegrafistas, editores, produtores, chefias de redação e, palpavelmente, aquele espírito egregorial (‘Quando várias pessoas têm um mesmo objetivo comum, sua energia se agrupa e se `arranja´ numa egrégora’) ali não se fazia presente. Só dava as caras quando eu sentava com o Narciso para discutir uma matéria – e, a bem da verdade, também aparecia quando estava trabalhando com o Caco Barcelos e o Ernesto Paglia.


Agora, que esta reflexão já está ‘plasmada’ sem romantismos, para mim ficou claro que, na medida em que a TV for a referência de jornalismo e o supérfluo for o fundamental, o tempo televisivo for dinheiro, o comercial mandar nas pautas, os editores editarem lágrimas e choros, os repórteres responderem às perguntas no lugar dos entrevistados, as notícias forem dadas só raspando o verniz do fato (sem nunca dar o ‘nome aos bois’), os narradores ‘interpretarem’ as notícias, o Ser/Jornalístico não for movido pelo mais honesto espírito democrático e os jornalistas todos se enxergarem como celebridades, acho que as redações vão continuar sem egrégora alguma.


Um neologismo adequado


Só para lembrar, ainda segundo a Wikipédia, ‘jornalismo é a atividade profissional que consiste em lidar com notícias, dados factuais e divulgação de informações. Também define-se o jornalismo como a prática de coletar, redigir, editar e publicar informações sobre eventos atuais.’


Fica uma pergunta: é isto que temos visto por aí? Ou cada dia mais se percebe que ‘lá dentro’ o que se dá é um joguinho de come-come para sair em Caras?


Uma sugestão: criar um neologismo mais adequado, um meio-jornalismo, chamado televisãosismo. Mas claro que lembrando sempre aos estudantes de comunicação que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.

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Compositor, educador e jornalista; Delfinópolis, MG