Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalista demitido por cumprir seu dever

O jornalista deve se esmerar para mostrar uma notícia, saber onde está o nó górdio, o âmago da informação, descobrir os meandros do dilema, juntar os cacos, traduzir e didatizar o texto que vai ao ar ou à prensa. Para isso, é preciso experiência, muita experiência, muitas noites mal dormidas e plantões sofridos. É preciso conhecer profundamente um pouco de tudo, saber escolher as palavras, resumir o pensamento, como Rubem Braga fazia, filmar o fato com a mente e mostrá-lo palatável e apetitoso. Quando for preciso, fazer analogias com as coisas do cotidiano para que os leitores, ouvintes e telespectadores tenham a idéia perfeita do acontecido e, aí sim, possam formatar suas opiniões. Este é o trabalho da imprensa: dar os ingredientes certos para que o público faça o seu tempero de acordo com o seu paladar.


São pouquíssimos os jornalistas que atingiram este patamar, esta capacidade profissional. Mas para conseguir, têm que ter bom caráter, têm que ser do Bem.


No Paraná, conto nos dedos os jornalistas capazes dessa façanha: Sérgio Brandão, Luiz Geraldo Mazza, Gladimir Nascimento, Leonardo Henrique dos Santos.


O passado foi o responsável


No início deste ano, o Gladimir, diretor e apresentador do jornal matinal da rádio BandNews FM, foi demitido porque deu o tom certo, fez a analogia certa da notícia que já se tornou lugar comum naquele estado: os deputados estaduais, na calada da noite da última sessão do ano, sem a presença do telão de votações e da imprensa, reajustaram suas aposentadorias além do execrável. Obrigar a população a pagar aposentadoria de deputado que diz que trabalha por apenas quatro anos já é um absurdo. Mas aumentá-la assim é crime.


No Paraná, não. Lá não existe imprensa e muito menos jornalistas, além dos já citados. Lá, eles fazem de conta que a imprensa é livre e tem autonomia, mesmo porque os patrões são completamente dependentes da elite empresarial local e dos políticos locais, estaduais e federais. Todos, sem exceção, vermes que comem a carne do querido povo paranaense por dentro, deixando só a pele para manter a aparência. Desta elite curitibana, da qual faz parte com orgulho e arrogância a classe média alta, podemos esperar de tudo.


Morei lá por mais de nove anos. Sou dependente de álcool, maconha e cocaína. Estava mal de saúde e minha mulher Celina me levou até o dr. Leocádio José Corrêa, da Sociedade Brasileira de Estudos Espíritas (SBEE), que me convenceu e me iluminou o suficiente para que eu conseguisse fazer um tratamento na clínica Quinta do Sol. Fiz e, graças ao meu poder superior, estou há quase 20 anos em sobriedade. Trabalhei nesta clínica como voluntário e lá aprendi a conhecer melhor o caráter das pessoas.


Logo que saí do internamento, depois de 78 dias, fiz um concurso para a Secretaria de Comunicação Social da Prefeitura de Curitiba. A secretária era a Cyla Schulmann, filha do então presidente da Febraban, Maurício Schulmann. Fui aprovado em terceiro lugar. Certamente, fiz uma boa prova, eram mais de dois mil concorrentes a 10 vagas de jornalista. Mas nunca fui chamado. A tal secretária inventou um erro, republicou a lista dos aprovados e me deixou em nono lugar. Chamaram só os oito primeiros colocados. Escarafunchei dentro da prefeitura e descobri que meu passado havia sido responsável por tudo. Dependente de droga e ex-UNE em Brasília, peito aberto no enfrentamento da ditadura, porradas vigorosas no pessoal da TFP, ativista, defensor dos direitos humanos e das liberdades. Essas coisas não caberiam no currículo de um jornalista da gloriosa Prefeitura de Curitiba.


Consciência mutilada


Se algum dia alguém assistir na TV ou ouvir no rádio ou ler em jornal alguma matéria feita em Curitiba contra os poderes constituídos, pode ter certeza de que esses poderes constituídos estão com o pagamento dos anúncios atrasado.


A imprensa curitibana é uma verdadeira vergonha. Os jornalistas se vendem por migalhas, se ajoelham por quase nada. O que mais preocupa são os recém-formados, pois estão aprendendo a profissão com essa corja, com esses lorpas, nesse valhacouto imundo.


Li neste Observatório a notícia da demissão de Gladimir Nascimento e fiquei abismado. Contei à Celina e minha mulher chorou como criança porque haviam mutilado a consciência crítica de um dos maiores jornalistas paranaenses. Ela ficou com muita raiva e escreveu o artigo abaixo. Ah, antes que me esqueça, deixei Curitiba com minha família, graças a Deus. De novo, lá, nem por escala de avião. Salto fora.


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Corruptos unidos jamais serão vencidos


‘Meu Deus! Como pode uma cidade que se diz de primeiro mundo deixar fora do jornalismo profissionais do Bem? Como podem os distintos e respeitáveis cidadãos curitibanos, que se norteiam pela ordem e disciplina, pela boa conduta, pela moral cristã, pela paz na família, deixar a oligarquia pedir a cabeça do Gladimir Nascimento?


Gladimir é talvez um dos últimos profissionais do jornalismo que fazem a nossa profissão valer a pena. Graças a ele, um monte de jovens movidos a bateria alcalina estava aprendendo que jornalismo era mais do que segurar microfone para aparecer na telinha. Poucos já estavam descobrindo que o que realmente interessa ao jornalista é a verdade dos fatos, mostrá-la doa a quem doer, acima do bem e do mal, mesmo que ladrões de galinhas ameacem com o desemprego. Esse medo do desemprego, outro grande inimigo da profissão, que faz com que muitos pais de família, jornalistas decentes, acabem se sentindo intimidados por ladrões de galinhas e por empresários lambedores de saco que se vendem por qualquer trocado. Corruptos unidos jamais serão vencidos. Por enquanto.


Gladimir Nascimento – e sua coragem de expor, sem dó nem piedade, as feridas ocultas das castas paranaenses – é mesmo uma grande pedra no sapato curitibano. Não existe ninguém da sua geração que seja tão bem informado, antenado, nem que ame tanto sua comunidade, no caso, a irretocável Curitiba. Não acredito que algum jornalista conheça tanto sua cidade, cada biboca, cada rua, beco, cada problema social, cada ninho de corrupção e todos os meandros do poder infectado pela ganância.


Vendidos, safados e omissos


Ninguém sabe tanto do que a população sofre e necessita. E ninguém mais do que o Glad percebe a fundo quais são os males que ameaçam os curitibanos. Sua ampla visão, sua voz corajosa, seu amor pelo ser humano, seu respeito à natureza, o entusiasmo visceral para minimizar a perpetuação da sacanagem que come a sociedade paranaense, são a marca registrada do ex-diretor da Rádio BandNews FM, demitido porque pediram sua cabeça. Mais um ponto para a nata dos poderosos. Eles pretendem devorar a alma e os valores paranaenses para aumentar seus bens escondidos em paraísos fiscais.


Mais uma da imprensa. (Ainda há imprensa no Paraná? Ou só alguns jornalistas que não se vendem nem aceitam fazer parte do imenso balaio de gatos e da panelinha de vendidos e omissos?). Que Deus proteja os poucos profissionais jornalistas que ainda sobrevivem ao desemprego, às ameaças, aos estagiários e paus-mandados dos patrões.


Que Nossa Senhora da Luz ilumine muuuito suas mentes. Que os verdadeiros jornalistas não desistam de informar a verdade. Que não se deixem intimidar, que não tenham que sair da cidade como muitos fizeram (eu, inclusive). Que os vendidos e omissos envelheçam, envileçam longe das redações, mancando, cegos, carecas, sem a língua, impotentes e isolados em manicômios por causa do ataque de culpa.


E que a galera profissional de verdade passarinhe, eternamente. Que nenhum jornalista paranaense precise sair da cidade que ama porque os donos do poder o expulsaram, fato corriqueiro que a imprensa eternamente comprada omite.


Gargalhadas dos banidos


Que os capitães das empresas e os donos da voz da gente sejam apenas comerciantes, nefastos vendedores de anúncios e se afastem do ambiente sagrado das redações.


E que no final de todo esse massacre aos ideais de bons profissionais pela galera do Mal, sobrem empregos para jovens e talentosos jornalistas e também para nós, jurássicos, postos de lado.


Que vençam a coragem, a informação, a verdade, a luta pelos direitos humanos, pela sociedade mais justa.


Que o bom humor refinado e indestrutível do Gladimir possa contagiar a maioria que ainda faz jornalismo de verdade para que, no final dos tempos de arbitrariedades, os banidos de hoje possam dar muitas gargalhadas. [Celina Maryia Alonso # jornalista com 30 anos de profissão, quase 18 vividos em Curitiba]

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Jornalista, São Paulo, SP