Nos últimos dias a cena política brasileira assemelhou-se a um imenso observatório da imprensa. A analogia não se completou graças a um detalhe – excesso de preconceitos. Não há debate, apenas troca de indignações.
Choveram acusações e denúncias, a metáfora da faca no pescoço inspirou charges, diatribes, elucubrações, o verbo acuar foi usado na voz ativa e passiva, mas faltou a disposição para avaliar uma crise com potencial para envenenar as relações governo-imprensa de forma ainda mais aguda do que a anterior, em meados do ano passado.
O pretexto para o confronto foi oferecido por dois registros jornalísticos espetaculares: o diálogo digital entre os ministros Ricardo Lewandovski e Carmen Lúcia seguido dias depois pela reprodução parcial de uma conversa telefônica entre este magistrado e um irmão.
Mesmo sem estes feitos o clima seria igual: o governo não contava com a disposição da mídia para criar tamanha expectativa junto à sociedade. Quando a sessão foi iniciada em 22/8/2007, a excitação de 2005 estava plenamente reavivada.
Preconceito poderoso
Os estrategistas políticos imaginavam que a denúncia do procurador-geral da República seria soterrada pela barragem de acusações proferidas pelos advogados dos denunciados e pelo inevitável tecnicismo jurídico que acompanharia as discussões em plenário.
Não contavam com o didatismo do relator, o ministro Joaquim Barbosa, que tornou tudo muito claro e transparente. Não contavam com o persistente acompanhamento da mídia (portais de notícias e blogs na internet, assim como rádios all-news). Não contavam, sobretudo, com a cobertura ao vivo da TV Justiça que envolveu aquelas sessões do STF numa atmosfera de excepcionalidade.
Esperava o governo que a mídia esqueceria um escândalo que empolgou grande parte da sociedade brasileira no período 2005-2006? Tantas vezes acusada de desmemoriada e de negligência no acompanhamento de casos demorados, a mídia se comportaria novamente de forma burocrática e indolente? Imaginava o governo que seus constantes ataques à imprensa a intimidariam?
O grande erro do governo foi não ouvir os conselhos do ministro-chefe da Secretaria de Comunicação, Franklin Martins, que repetia: ‘Não esqueçam dos jornalistas’. Intoxicados pelas próprias denúncias contra um suposto golpismo da imprensa, o núcleo palaciano esqueceu que esta imprensa não é uma entidade-fantasma, abstrata, servida por autômatos desalmados e desvitalizados.
Auto-enganou-se. Enfiou na cabeça o preconceito de que jornalistas são empurrados apenas pelo mimetismo ou espírito da manada. E esqueceu que a imprensa também tem auto-estima.
Exercício crítico
O jornalismo não nasceu em teses acadêmicas, ele é o que é graças a uma consciência profissional sedimentada ao longo de quatro séculos, geralmente não-verbalizada, porém inequívoca. Viva.
Foi este amor-próprio que levou o fotógrafo Roberto Stuckert Filho a acionar a sua câmera, foi esta dignidade coletiva que levou a repórter Vera Magalhães a prestar atenção ao que dizia um magistrado do STF no pátio de um restaurante.
Observar a imprensa sem levar em conta a sua humanidade é um exercício crítico fadado ao fracasso.
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