O combativo Juca Kfouri fez feio na semana passada. Ao comentar, em seu blog, no sábado (25/3), o beijo que o presidente do Real Madrid teria dado no garoto Neymar, de 14 anos, Juca deu margem para que surgisse uma dúvida entre seus leitores: estaria o famoso jornalista fazendo apologia à exportação de mão-de-obra infantil e, de maneira indireta, defendendo o fim das categorias de base nos clubes brasileiros?
‘O menino Neymar, de 14 anos, que estava no Santos, é tão carismático que ganhou um beijo hoje do presidente do Real Madrid, Fernando Martins’, informa a nota, sob o título ‘Presidente do Real beija Neymar’, que abria a edição de sábado. Carismático? Ora, Juca, há alguma criança que não tenha carisma, que não carregue em seu rosto aura de pureza, sorrisos largos, disposição para conhecer coisas novas?
O beijo apenas reforça a tese de que o Brasil se tornou não somente exportador de craques prontos, como de mão-de-obra infantil. O presidente do Real não estava fascinado com o ‘carisma’ do menino. E sim com a possibilidade de ter em seu elenco, a custo zero, uma promessa de craque. Afinal, a equipe madrilenha não se deu o trabalho de ter sequer ‘encontrado’ o diamante bruto. Não gastou um centavo para mantê-lo cercado de cuidados necessários nesta etapa da vida.
Para trabalhar
Neymar encontrou no Santos toda estrutura para desempenhar e ver seu futebol crescer a cada dia. E sob os olhares de lendas do futebol brasileiro, como Zito, Pepe, Coutinho, Ramos Delgado, Clodoado, além do maior de todos, o rei Pelé. O Santos lhe deu quase tudo. Por que quase tudo? Porque o restante das boas coisas ainda estaria por vir, como seu aproveitamento aos poucos na equipe de cima, a titularidade da camisa santista, conquistas de títulos e, por fim, salário de estrela. Tal qual Robinho.
Na verdade, o que está havendo nesta história é um flagrante atentado às leis brasileiras. Neymar não está na Espanha para fazer intercâmbio cultural. Está lá sim como trabalhador. E terá sua atividade explorada por mãos que nunca lhes tocaram antes. O diamante bruto que estava sendo polido no Brasil, o país do futebol, cairá em outras mãos. Sabe-se lá se Neymar, dentro de cinco ou seis anos, terá o mesmo gingado brasileiro!
Neste mesmo texto, Juca informa que ‘Neymar está na capital espanhola com seu pai e o empresário Wagner Ribeiro, o mesmo de Robinho’. Ou seja, ao mesmo tempo em que traz essa informação, Juca parece desprezá-la sob o ponto de vista da traficância de menores. Pois está claro que o garoto está indo para trabalhar, levado pelas mãos de um dos empresários mais criticados por clubes como Santos e São Paulo.
Mais importante
O beijo do dirigente madrilenho não foi dado ‘num simples e encantador garoto’. E sim na possibilidade de transformar essa singela mercadoria, risonha como deve ser, numa montanha de dólares amanhã. Os dirigentes do Santos tinham sim o direito de concluir essa lapidação e se beneficiar do futebol do menino (lembrete meu: o Santos também está envolvido numa disputa idêntica com o Adap, do Paraná, para ver quem fica com o garoto Jean Carlos Chera, outra promessa de craque).
Juca completou sua informação dizendo que ‘as negociações estão avançadas, mas ainda não concluídas’. Novamente, contrariando a si próprio, deixou claro que o beijo foi ato meramente mercantil. Nada de ‘amor à primeira vista’. Na nota, informa ainda que o Real oferecerá ao pai do menino um belo emprego na montadora Audi, patrocinadora do time espanhol.
Sem dar qualquer detalhe, Juca disse que ‘Wagner Ribeiro está sendo acusado de tudo e mais um pouco em Santos’. Não esclarece por que o clube de Vila Belmiro está, digamos, furioso com a atitude do empresário. Faltou contar essa parte da história – tão ou mais importante do que o apreciado beijo do cartola em Neymar.
Lamentável
Conhecido por apurar suas pautas com profundidade, Juca falhou ao não checar (e informar seus leitores) se há ou não ações contra Wagner Ribeiro tramitando nas varas da Infância e Juventude do Estado de São Paulo por exploração do trabalho infantil. Sabe-se que o Ministério do Trabalho recebeu várias denúncias contra o empresário, justo no caso envolvendo Santos e Neymar.
Tudo estaria muito bem explicado se o pai do garoto estivesse com ele, sozinho, na Espanha, atrás ‘de uma vida melhor para a família’. E se também seu filho não estivesse vinculado a nenhum clube no Brasil. E se as negociações (se é que se pode negociar o trabalho de menor, principalmente fora do país de origem) não fossem conduzidas por Wagner Ribeiro.
A julgar pela nota postada no blog, o empresário que vendeu Robinho e Kaká – e agora na iminência de traficar um menor – é uma das figuras mais nobres do futebol. Para não deixar dúvida sobre de qual lado está (talvez sem se dar conta do que escreveu), Juca conclui a nota com a seguinte questão: ‘Fosse você o pai de Neymar, o que escolheria para seu filho hoje? Espanha ou Brasil?’ Lamentável.
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Jornalista em Brasília