Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Judiciário proíbe livro sobre Lampião

Mais uma censura editorial foi perpetrada. E, pelo próprio Poder Judiciário. Não bastassem episódios recentes e conhecidos, como o do jornalista Ruy Castro, que teve proibida a circulação da biografia Estrela Solitária: um Brasileiro Chamado Garrincha, e de Paulo Cesar Araújo, com a biografia não autorizada do cantor Roberto Carlos, sob a alegação de invasão de privacidade, agora é a vez da biografia de Lampião.

Trata-se do livro Lampião – o Mata Sete, do juiz aposentado Pedro de Morais, que apresenta o ilustre cangaceiro tendo uma relação homossexual com outro membro de seu bando, Luiz Pedro.

O livro que, segundo seu autor, é fruto de anos de pesquisa sobre o personagem, também mostra Maria Déia, conhecida como Maria Bonita, como adúltera, pois teria se envolvido com Luiz Pedro. Na verdade, o livro induz um triângulo amoroso entre eles. Outro fato trazido à luz pela obra de Pedro Morais seria a contestação da paternidade da filha de Lampião e Maria Bonita, Expedita Ferreira de Oliveira Nunes, nascida em Sergipe, em 1932, pois Lampião seria impotente, devido a um ferimento à bala recebido nos genitais no ano de 1922.

Nesse contexto, os descendentes de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, ingressaram com ação judicial perante a 7ª Vara Cível de Aracaju (SE), tendo obtido, liminarmente, por despacho do juiz Aldo Albuquerque, a proibição do lançamento e comercialização da obra. Para o advogado da família, Wilson Winne, “direito de liberdade de expressão tem um limite. Essa obra viola a invasão de privacidade. Ele é uma pessoa histórica. Quando se fala de Lampião, é da parte histórica. Que ele era violento, pistoleiro, herói ou bandido, mas neste caso atinge a honra da família. Está interferindo na vida da pessoa, de sua família”.

Em Portugal, já havia censura antes do descobrimento

A par de como tenha vivido sexualmente Lampião e quais fatos a respeito de um personagem da História que possam ou não ser selecionados para vir a público, o episódio nos remete à discussão necessária sobre a liberdade de expressão e a utilização de mecanismos para restringir a sua plenitude, em plena vigência do Estado Democrático de Direito à luz da Constituição Federal e das convenções internacionais.

Censura, aliada à repressão e perseguição de toda ordem, é um dos elementos que caracterizam um regime político autoritário, truculento e ditatorial. Ela é utilizada como mecanismo voltado à calar os críticos e opositores do regime, buscando esvaziar o nível de contestação e os focos de rebeldia que possam ser nocivos à consolidação de um programa ou de uma continuidade institucional que rompeu com o governo ou regime anterior. Não se coaduna com a vigência da liberdade.

A nossa tradição repressiva em termos de liberdade de expressão é longa. A forte tradição eclesiástica vigente na Europa, consolidando o poder papal e os dogmas da Igreja Católica, deu o norte do poder opressivo contra a liberdade que pregasse ideias diversas daquelas cunhadas por Roma e acatadas pelos reinos católicos. Assim, em Portugal, antes do descobrimento já havia a censura, quando as obras de John Wycliffe e Jan Hus foram proibidas e queimadas, em 1491, por ordem real de Dom Afonso V.

A primeira legislação sobre a lei de imprensa

A instauração da Inquisição (Tribunal do Santo Ofício) na Corte portuguesa só aumentou o nível de controle exercido sobre a população. Assim já o era com a proibição da vulgata da Bíblia, que se popularizara com as traduções luteranas, em alemão comum, muito antes, e a proibição de estudo e ensino da doutrina judaica. O priorado da Ordem de São Domingos fora investido e incumbido, por volta de 1540, pelo cardeal Dom Henrique, então inquisidor-mor, do exame prévio de toda obra, podendo proibir-lhe a publicação e representar a instauração perante o Tribunal do Santo Ofício o que, após algumas décadas, foi estendido à outras ordens religiosas, mediante a criação de um index onde constassem as obras proibidas de edição, publicação e divulgação. Era comum a repetição ou reprodução no index de obras banidas no resto da Europa, principalmente em algumas universidades.

Essa tradição foi transposta à colônia, forjando as bases de nossas tradições régias e civis no controle da liberdade de expressão. Aliás, o Brasil, bem como a África, era o destino daqueles degredados pelo Desembargo do Paço por violação às regras da censura portuguesa.

Antes do período liberal, também o governo do marquês do Pombal valeu-se da censura como instrumento de combate às ideias, tidas por hereges, contra a afirmação do poder real de Dom José I. Ele criou a Real Mesa Censória para, entre outras finalidades, reprimir as obras ou jornais periódicos e submetê-los às condenações do Tribunal do Santo Oficio, que só seria extinto 1821. Foram alvo constante os jesuítas e sua faina catequizadora, além de protestantes holandeses e alemães que já se espalhavam pelas colônias pregando uma nova interpretação das Escrituras sagradas.

No Brasil, em 1808 suspendeu-se a proibição dos prelos, porém, não existia a livre atividade da imprensa. Nesse mesmo ano, surgiu o primeiro jornal brasileiro, A Gazeta do Rio de Janeiro, que era submetido à censura prévia. Em 1821, diante da aprovação pelas Cortes Constituintes de Portugal de texto constitucional que acolhia a liberdade da manifestação de pensamento, o regente imperial, Dom Pedro de Alcântara, baixou normas proibindo a censura prévia no Brasil. Na sequência dos episódios que culminariam com a independência, por obra de José Bonifácio, editou-se a primeira legislação sobre a lei de imprensa, com atribuições de responsabilidades pelos excessos cometidos, que teve aplicação prática com a criação do júri de imprensa, através do decreto de 18 de julho de 1822.

Proibição a qualquer tipo de censura

Uma vez proclamada a independência do pais, a Constituição de 1824 adequou-se ao modelo constitucional liberal e assegurou a liberdade de expressão e de imprensa. O art. 179 do referido texto consagrava: “A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. (…) IV. Todos podem communicar os seus pensamentos, por palavras, escriptos, e publical-os pela Imprensa, sem dependencia de censura; com tanto que hajam de responder pelos abusos, que commetterem no exercicio deste Direito, nos casos, e pela fórma, que a Lei determinar.” Excetuado o breve período de Dom Pedro I, que por seu temperamento pessoal via-se impelido a perseguir alguns de seus opositores pessoais, a liberdade de expressão teve estabilidade e respeito às regras de direito que, no Segundo Império, que foram observadas por Dom Pedro II.

O período republicano será marcado por alguns interstícios de ataques à liberdade de imprensa, começando com os arroubos autoritários de Floriano Peixoto na República Velha e outros de Hermes da Fonseca e Washington Luís, até os dois maiores episódios de censura e ataque à liberdade de expressão: a repressão do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) da ditadura Vargas (1937-1945) e a censura do regime militar (1964-1985), feita pelo Ministério da Justiça, por intermédio da Polícia Federal com seu Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e sua Divisão de Censura e Diversões Públicas, do próprio Ministério da Justiça.

A partir da instauração do regime democrático, a censura foi extirpada quando a Constituição Federal cunhou o artigo art. 5°, inc. IX, que estabelece que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Trata-se de uma cláusula que significa uma proibição geral a qualquer tipo de censura prévia.

Tentativas de vetar livros nos EUA

Nesse aspecto, a Constituição Federal seguiu a linha geral da que no seu artigo 13.2 afirma que o exercício da liberdade de expressão “não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar: a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas”. O inciso IV também assegura que “a lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso II”. Aliás, a referida Convenção inova sobre a matéria, em relação à própria Convenção Europeia de Direitos Humanos e ao Pacto sobre Direitos Civis e Políticos, que não possuem comandos normativos de mesmo alcance.

O sistema de proteção à liberdade de expressão, tanto no plano constitucional quanto no plano convencional internacional, pela aplicação de seus dispositivos e reiterada construção hermenêutica que lhe dá a jurisprudência deve ser no sentido de que eventuais desencontros entre o direito de externar/publicizar opiniões e ideias, no confronto com outros direitos, deva prevalecer, sendo os eventuais prejuízos passíveis de reparação posterior mediante ações cabíveis, calcadas em danos materiais e morais porventura existentes. Assim que a tentativa de embaraçar, embargar ou proibir qualquer publicação e, em especial, livros, se afigura uma afronta constitucional e legal.

Mesmo nos Estados Unidos, houve, algumas vezes, tentativas de vetar livros que eram perturbadores pelo conteúdo moral ou social que se propunham a transmitir. Obras como As aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain; O Apanhador no Campo de Centeio, J. D. Salinger; Ratos e Homens, de John Steinbeck, e O Sol é para todos, de Harper Lee, foram frequentemente contestadas ou reprimidas por motivos políticos, sociais ou sexuais, sendo alguns banidos porque pareciam obscenos ou censuráveis como Folhas de Relva, de Walt Whitman, ou Ulisses, de James Joyce.

“Transgressão às liberdades fundamentais”

Felizmente, a postura da Suprema Corte norte-americana gradativamente foi impondo uma interpretação mais liberal a esse respeito, inadmitindo a censura prévia, pois passou a consolidar entendimento à luz da dicção da 1ª Emenda à Constituição de 1887, que diz: “O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao governo petições para a reparação de seus agravos.” Uma coisa aparentemente banal, mas que merece ser lembrada, é que desta emenda decorre não só o direito de falar livremente, mas outros direitos correlatos como o de acessar informações. Isso porque sem uma audiência, a liberdade de expressão perde o seu sentido filosófico e prático.

No Brasil, entretanto, há a peculiar situação em que os juízes têm concedido medidas liminares aptas a proibir ou até mesmo postergar a publicação de matérias jornalísticas e obras literárias em geral, assenta-se no argumento que o que a Constituição Federal garante é a proibição contra restrições prévias à liberdade de expressão de cunho administrativo, isto é, aquelas advindas do Poder Executivo. Ao contrário, as restrições feitas em sede de decisões judiciais, em quaisquer esferas ou graus de jurisdição, seriam perfeitamente possíveis, diante dos fatos concretos, pois haveria a potencialidade de as publicações, sendo levadas a efeito, ocasionarem danos morais irreparáveis.

Não se questiona, no entanto, o dano causado à opinião pública que tem o direito de saber o que ocorre na sociedade. Por ocasião da polêmica em que o jornal Estado de S. Paulo foi proibido de publicar matérias sobre Fernando Sarney, pelo Tribunal de Justiça do DF, o ministro do STF Celso de Mello advertira: “(…) A censura governamental, emanada de qualquer um dos três poderes, é a expressão odiosa da face autoritária do poder público. Representa interferência indevida na vida dos cidadãos que não podem estar sujeitos a critérios definidos pelos detentores do poder. O debate sobre assuntos públicos tem que ser tratado de maneira ampla, sem contenção ou reserva. Aqueles que estão na arena pública devem se expor ao permanente escrutínio dos cidadãos para que o ofício de governo, que é tão nobre, possa ser exercido sem desvios. (…). Os tribunais devem se mostrar impregnados dessa consciência democrática de que agora vivemos um novo tempo, o tempo de liberdade. Liberdade com responsabilidade, é evidente, mas não faz sentido essa proibição apriorística que é um veto inaceitável, intolerável e insuportável. Isso não pode ser admitido, especialmente num regime fundado em bases democráticas.” E ao final, recomendava: “(…) Basta a leitura do artigo 220 para verificar que o legislador constituinte exprimiu a hostilidade do ordenamento constitucional a qualquer forma de embaraço à plena liberdade de informação jornalística e proibiu censura política, ideológica e artística (…). A censura representa a própria antítese dos grandes princípios que dão sustentação ao regime democrático. A gente sente e nota que ainda existe dentro do sistema institucional brasileiro núcleos ou bolsões que guardam resíduo de autoritarismo. Imprensa livre é condição fundamental para uma sociedade se proteger contra qualquer forma de opressão estatal. Ato de censura constitui manifestação inqualificável de desrespeito e de transgressão às liberdades fundamentais. E tão preocupante quanto à censura do Executivo é aquela revelada em decisões judiciais.”

Diversidade de ideias e opiniões

Também a ministra Carmem Lúcia, do STF, considerou perigosa a censura prévia no episódio em que o Superior Tribunal Militar negou acesso ao jornal Folha de S.Paulo no processo referente à atuação de Dilma Rousseff durante a ditadura militar (1964-1985). A ministra consignou: “É certo que toda Justiça que tarda falha (…). O caso 'permite entrever uma espécie perigosa, grave e inconstitucional de censura prévia judicial'.”

Assim, qualquer pessoa ou instituição que tenta proibir a publicação ou veiculação de um livro está, em última análise, atacando os valores democráticos da diversidade e da tolerância. Os livros espelham uma visão de mundo objetivo ou subjetivo de quem os escreve e, por via de consequência, para quem os lê. Trata-se de um poder de transmitir não só o conhecimento, mas tantos outros sentimentos que ajudam na compreensão do mundo e, por isso deve ser protegido, como forma inalienável de preservação do conhecimento humano. Foi graças a isso que evoluímos como pessoas e como sociedade.

Por isso é necessário – diria, quase indispensável – que se apoie qualquer esforço para educar o público sobre a censura e sobre o liberdade de expressão e de imprensa, no sentido de educar o público para a diversidade de ideias e opiniões como afirmação dos direitos humanos e fundamentais de todo e cada cidadão.

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[Ben-Hur Rava é professor universitário e advogado]