Gay Talese é um grande jornalista, grande escritor, grande figura intelectual. Seus livros são criativos, primorosamente escritos e pesquisados, consistentes, ficam de pé na estante. Merecem ser revistos e rediscutidos.
O recente lançamento no Brasil da última obra de Talese, Vida de Escritor, é apenas um pretexto para discutir o comportamento da mídia diante das pressões das editoras, produtoras de cinema e música, agentes literários e artísticos para vender seus contratados e respectivos ‘produtos’ com grande impacto.
A questão pode parecer irrelevante, secundária, distante das transcendências que produzem a atual crise do jornalismo impresso, talvez a maior em seus quatro séculos de existência.
A questão não é irrelevante nem secundária porque está ficando óbvio que a imprensa está se deixando usar e não apenas nos seus cadernos culturais e de entretenimento. Também nos cadernos de esporte (isto é, futebol), informática, negócios, feminino e locais a imprensa está a reboque dos fatos consumados, indiscutíveis.
Tropa de choque
Ao ceder às pressões dos mercados, ao aceitar a formação de pools – ainda que transitórios –, ao abrir mão do seu ritmo, instinto, identidade e ao abdicar da indispensável pluralidade, nossa imprensa assume uma perigosa parceria com as fontes de informação.
Ruim para ambas. Já foi pior: a tática dos lançamentos maciços, tipo rolo-compressor, produziu enormes desgastes, como foi dito neste Observatório há pouco mais de quatro anos (ver ‘Folha recusou oba-oba‘, ‘Veja e a reclassificação das espécies‘ e ‘Paulo Coelho ao cubo‘). A crise econômica refreou delírios e apetites das assessorias de imprensa que só admitiam a palavra ‘sucesso’ quando seus produtos eram assunto de capa dos quatro semanários no mesmo fim de semana, e dos cadernos culturais dos principais jornais. Menos do que isso era fracasso.
Esta forma acachapante de anunciar novidades é antijornalística porque pressupõe acertos, privilégios e porque, logo em seguida, irá prejudicar o consumidor desses filmes, livros, discos, shows. O veículo que aceitou participar de um grande esquema promocional não vai dispor-se a contradizer ou mesmo reiterar o que disse e, por outro lado, os que ficam de fora da orquestração não se animam a gastar o seu espaço ou tempo em algo já badalado ad nauseam.
Esta estréia tipo ‘arrasa-quarteirões’ desestimula o contraditório e desarma as polêmicas. O resenhista, crítico ou ensaísta que ousaria discordar do coral vai preferir manifestar-se sobre outro livro, filme ou música a enfrentar a tropa de choque dos grandes veículos. Como sabemos, nossa imprensa começou muito arisca, invocada, brigona e, duzentos anos depois, entrega-se prazerosamente aos bom-mocismos.
Banho de ceticismo
No fim de abril, princípio de maio, Gay Talese concedeu três entrevistas exclusivas (excelentes, diga-se) e mesmo ao leitor desavisado não escapou o esquemão promocional. Não há infração, é legítimo, o produtor de cultura precisa persuadir. Mas quando apela para recursos de grosso calibre produz desajustes, inclusive no próprio processo cultural. Gay Talese merece a badalação, mas certamente não o incomodaria discuti-la com serenidade.
O último filme de Woody Allen exibido no Brasil (Vicky, Cristina, Barcelona) foi precedido pela barragem de elogios e incensamentos que não admite discordâncias. Para não ficar à margem do dernier cri, enfrentam-se filas, correrias, alteram-se prioridades até que, semanas ou meses depois, vai-se conferir e ficam à mostra os juízos suspeitos: o filme é bem feito – não poderia ser diferente – porém pleno de equívocos e o pior, rigorosamente igual a meia dúzia de outros que o cineasta ambientou em Nova York, com a diferença que neste adotou vulgares maneirismos espanhóis que um artista consciencioso jamais admitiria.
A utilização da artilharia pesada para anunciar novidades culturais é um perigoso bumerangue: acostuma o consumidor de cultura às excitações enganosas e diminui, se não elimina, o inefável prazer das sugestões, o sutil sabor das descobertas e a cálida indução do crítico, do amigo ou do vendedor da livraria.
Dois livros recentes, discretamente lançados, são exemplos do descompasso criado a partir do padrão estrepitoso: Eles Foram para Petrópolis, uma correspondência virtual na virada do século (Companhia das Letras) é um delicioso diálogo entre dois grandes jornalistas, Ivan Lessa e Mario Sergio Conti, criativo resgate do gênero epistolar (ou e-pistolar). Na contramão do new journalism é uma new literature com os mesmos ingredientes e o mesmo resultado.
Ética, jornalismo e nova mídia – uma moral provisória, de Caio Túlio Costa (Zahar), é uma das mais completas reflexões sobre a profissão porque a projeta além dos limites auto-impostos, coloca-a no âmbito das grandes indagações filosóficas. O primeiro ombdusman da Folha de S.Paulo convocou Sócrates, Montaigne, Spinoza, Velásquez, Karl Kraus, Walter Benjmain e uma dúzia de outros pensadores e observadores para ajudá-lo neste estimulante banho de ceticismo.
Não foram para a lista dos best-sellers. Mas, ao contrário destes, poderão fazer história.