Em meio a cartas de cidadãos revoltados com o presidente da República circulando pela internet, um internauta que se passa pelo padre Marcelo Rossi numa sala de bate-papo do iG, e uma condenação à Rede Record a pagar indenização a uma família exposta no antigo programa do Ratinho, naquela emissora, a Lei de Imprensa pode ser considerada em seu momento de transição.
O Brasil nunca teve tradição de reparo pecuniário às chamadas vítimas da imprensa, pessoas que injustamente são expostas publicamente, tendo com isso prejuízos que vão do moral ao financeiro. Nos últimos anos, entretanto, algumas ações indenizatórias têm sido vitoriosas na Justiça e a imprensa, em geral, em se tratando de matéria que mexa com a dignidade de alguém, tem procurado ouvir o prejudicado antes da publicação, tanto para cumprir um procedimento ético como para evitar uma ação e um prejuízo.
Deixando uma época em que praticamente inexistiam ações judiciais contra calúnia e difamação pela imprensa, para um momento como este em que está patente a possibilidade de indenização pelos órgãos de comunicação a qualquer um que comprove ter sido vítima, há de se supor que estamos marchando para uma realidade já comum em países como Estados Unidos e Inglaterra. Para não se ver envolvido em ações milionárias, que chegam até a ameaçar sua sobrevivência, os nossos veículos de comunicação têm adotado – e deverão fazê-lo ainda mais no futuro próximo – medidas preventivas, como ouvir o outro lado e levar a decisão da publicação de matérias mais polêmicas à diretoria e não mais do editor ou chefe de redação.
Falsidade ideológica
Se os órgãos de comunicação tradicionais estão sob pressão de ações judiciais crescentes, a internet tem vivido um momento de descontração, pois por ela circulam livremente informações das mais diversas, sem qualquer preocupação com ‘o outro lado’. Sem contar a existência de milhares de blogs, alguns de jornalistas e pessoas da área de comunicação, em que se diz e publica o que o autor quer, sem restrição, temos também cartas e mensagens que circulam livremente de um e-mail a outro, num fator multiplicador progressivo que torna esta correspondência veloz e com capacidade de atingir milhares e até milhões de pessoas.
Nestes últimos dias, temos recebido algumas dessas cartas-circulares pela internet, falando mal do presidente da República. Isto acontece aqui no mesmo momento em que, nos Estados Unidos, John Green foi suspenso de sua atividade de produtor do noticiário da rede ABC de televisão, o famoso Good Morning America, porque havia mandado a um colega dois e-mails ridicularizando o presidente Bush (‘Produtor suspenso por mensagem sobre o presidente‘, OI 375, 5/4/06). E estes e-mails, cujo conteúdo tornou-se público pela divulgação na internet, foram enviados há mais de um ano.
Na nossa rede, tudo acontece mesmo livremente. Em 31 de março, o padre Marcelo Rossi inaugurou seu site e, para comemorar, participou de um encontro com internautas, num chat promovido pelo provedor iG, a partir das 19h. Muita gente que não encontrou o caminho certo foi parar na sala de bate-papo do iG destinada a católicos, que não tinha nada a ver com o chat do padre. Desta forma, perdidos e à procura do padre que ali não estava, acabaram vítimas de um internauta que se apresentou como padre Marcelo, deu bênçãos, aconselhou, até que acabou deixando a sala, depois de mais de 10 minutos, quando alguns já desconfiavam da falsa identidade. Evidentemente, este não é o primeiro e nem o último caso de falsidade ideológica pela internet, especialmente nas salas de bate-papo, onde é comum homem se passar por mulher e vice-versa, mesmo com o uso cada vez maior de webcams (eficientes em frustrar tentativas de falsidade de identidade).
É o risco
A condenação da Rede Record de Televisão ocorre agora, depois de 6 anos que o programa foi ao ar, exatamente no mês de abril de 1998. Ratinho, em um daqueles inúmeros testes de DNA que patrocinou para pessoas que não tinham condições de pagar, mas precisavam comprovar paternidade, acabou chamando de covarde, entre outras ofensas, um pai que não queria assumir. Na verdade, o ofendido já havia entrado na Justiça com pedido de reconhecimento de paternidade para pagamento de pensão alimentícia, mais de 15 dias antes do programa.
No trabalho com informação sempre há este risco de atualização. Se não houve a preocupação da produção de Ratinho em procurar o pai comprovado pelo exame de DNA ou este se negou a falar, não importa aqui, o importante é que se considerou como verdadeira uma situação que já havia mudado. Esta é uma realidade presente no cotidiano do jornalista: a notícia que não pode deixar de ser levada ao público, o outro lado que não é encontrado ou não quer falar e a hora de fechamento que chega; o que fazer?
Evidentemente que em quase 100% dos casos prevalece a publicação e o risco de enfrentar a Justiça depois. O jornalismo investigativo tem levado as publicações a sérias criticas, quando não a ações judiciais. Não tem jeito, este é nosso risco. Mesmo que consigamos aprimorar a capacidade de ouvir a tempo as pessoas que poderão ser atingidas negativamente com a notícia a ser publicada, sempre haverá algum risco. Principalmente se considerarmos um caso recente, como a revelação da farsa montada pelos advogados de Suzane von Richthofen para impressionar o público do programa Fantástico (9/4/2006) – e naturalmente influenciar no julgamento que deverá ocorrer em menos de dois meses.
Espaço para ataques
Todo mundo viu a gravação e é indiscutível a má intenção dos advogados. Entretanto, lembrando o caso O.J. Simpson, para demonstrar que mesmo com toda segurança, há riscos para quem é responsável pela informação, no caso a Rede Globo. Acusado de ter matado a ex-mulher e um amigo, em 1994, Simpson era tido inicialmente como culpado, por provas irrefutáveis, mas acabou absolvido para perplexidade geral dos 20 milhões de telespectadores que assistiam pela TV ao julgamento e para os americanos em geral. Assim como os advogados de Simpson não contestaram o exame de DNA do sangue dele encontrado no local do crime, por ser esta prova irrefutável, mas a metodologia de coleta e do próprio exame, a gravação de Suzane, com microfone aparentemente desligado, é incontestável, mas além do microfone ligado, também o sistema de gravação funcionando, pode levar os advogados a demonstrar o ardil preparado previamente e obter na Justiça uma condenação à emissora. Tudo é possível. O julgamento Simpson consumiu 50.150 folhas no processo e somente a palavra sangue foi pronunciada 15 mil vezes, o que dá uma idéia de que a Justiça é igual em todo lugar e que através de marchas e contramarchas uma situação pode mudar diametralmente.
A única realidade em se tratando de ação judicial é o longo tempo para se chegar ao veredicto. Como a condenação da Record saiu depois de 6 anos, o mesmo acontece com outras ações indenizatórias na Justiça brasileira. Sem dúvida, isto representa uma vantagem para o acusado e diríamos até uma garantia de plena defesa. O jornalista e a empresa jornalística cumprem seu papel de informar e demonstrar a verdade, de forma transparente, socialmente e profissionalmente. Não são infalíveis e à medida que avançam na busca da informação, maior é a possibilidade de erro. Quando este ocorre, vem a correção, algumas vezes à custa de indenização.
A ação judicial representa de imediato um trauma para o acusado, mesmo para pessoas que costumam tratar friamente assuntos mais sérios e empresas bem estruturadas juridicamente. Somente depois de algum tempo o impacto inicial dá lugar ao racional livre para se preparar para o embate jurídico e, por outro lado, não se pode garantir que o clima predominante ao inicio de cada ação, próximo ainda dos fatos que a motivaram, seja o ideal para que o julgador se pronuncie, livre de qualquer influencia. Então, o tempo prolongado permite tanto uma defesa mais equilibrada, como um julgamento mais livre de influências.
O debate de idéias sempre aconteceu entre intelectuais e jornalistas de renome, mas o espaço de jornais também já serviu muito para jornalista atacar jornalista. Gilberto Di Pierro, o colunista Giba Um, da antiga Última Hora, passou por maus momentos, por causa da campanha movida pelo seu ex-amigo e também colunista Arley Pereira, do Diário Popular (atual Diário de S.Paulo). Durante mais de dois anos, invariavelmente, Arley atacou todos os dias o ex-colega de Editora Abril, chamando-o de ‘careca, bigodudo, mau caráter’, mas nunca revelando o nome do personagem, para evitar ação judicial reparadora. Quem diria? Giba Um, Arley Pereira e Jô Soares, inseparáveis na vida noturna paulistana dos anos 1960, poderiam ter tomado destinos diferentes, mas não uma inimizade tão marcante entre dois deles.
A coluna do Giba Um era conhecida pelas fofocas que derrubavam muitos colunáveis, entre eles a cantora Gal Costa e a apresentadora Hebe Camargo, mas ele próprio não conseguia se ver livre do veneno do Arley, cuja coluna, ao contrário, era apenas informativa e nada de fofoca, exceto o caso do’careca, bigodudo, mau-caráter’, que, diga-se de passagem, todo mundo sabia quem era.
Consciência de cidadania
Só não sabe mesmo o que é o peso moral de uma notícia difamatória quem nunca foi atingido. Um certo dia dos malfadados anos 1970, comecei a receber telefonemas e a ser abordado por colegas que queriam saber o que tinha havido entre mim e Ebrahim Ramadan, diretor da redação do jornal Notícias Populares. O dito-cujo havia publicado extenso artigo esculhambando o colega Josué – eu, naturalmente –, começando pelo título que já vinha com meu nome. Josué isso, Josué aquilo, coisas que nada tinham a ver comigo, mas que estavam lá no artigo. Aquele não era eu, razão pela qual até pessoas com as quais não falava há anos se empenhavam em solidarizar-se comigo. Procurei saber o porquê do artigo, só tendo chance depois de todo um período da manhã e do almoço conturbados, pois Ebrahim só chegava depois das 14h, quando não atrasava.
Ebrahim achou tudo divertido, porque na verdade o artigo tratava de outro jornalista, da Editora Abril, conhecido apenas da classe, já que o Josué com coluna diária era este aqui. Um ato irresponsável, que me criou transtornos, havia sido cometido pelo diretor de redação de um jornal da Empresa Folha da Manhã, por molecagem ou ingenuidade, e eu não tive como fazer nada a respeito, a não ser esclarecer as pessoas com quem tinha contato. Afinal, o que poderia fazer contra um diretor de redação de um jornal da mesma empresa onde trabalhava, que estava no cargo por influência de Antonio Aggio, diretor da Folha da Tarde, que gozava na época, tempo da ditadura, de grande prestígio?
Hoje, poderia mover uma ação indenizatória – e com muita razão, pelo que passei naqueles dias. Mas, naquele momento, seria se opor abertamente contra a empresa em que trabalhava e contra gente ligada diretamente à ditadura. O NP era um jornal importante e Ebrahim, como herdeiro de Jean Mellé, seu fundador, soube bem conduzi-lo durante anos. Foi um pequeno desvio do diretor do popular jornal, agravado pelo fato de o artigo visar alguém que dele nem tomou conhecimento.
As ações judiciais de hoje se baseiam em leis que já existiam desde os anos 1960. O que mudou foi a consciência de cidadania. Agora, qualquer exposição nos meios de comunicação pode levar a vitima para o Tribunal, em busca de reparos. Ainda não há muita convicção em relação a valores, razão pela qual muitas ações não fixam o preço da indenização pleiteada, deixando por conta do juiz estabelecê-lo. Enquanto outras ações exageram no valor, frustrando-se seus autores com o resultado final, nada comparável com o pleiteado. Tudo isso indica que o Brasil está aprendendo a conviver com esta nova situação.
Companheira de viagem
Por outro lado, os valores das ações em relação aos condenados a pagar também não são tão realistas. Há de se considerar que 750 salários mínimos (262.500 reais), valor da indenização a ser paga pela Record, representa menos que 25 mil reais quando o condenado é um jornalista de pequeno jornal ou assalariado de um grande. Indenizações milionárias também podem inviabilizar grandes empresas jornalísticas. A própria ação contra a Record teve o valor do reparo fixado pelo juiz da primeira instância em apenas 32.500 reais, a ser repartido entre o pai caluniado, o avô e uma das tias. Foram os desembargadores que corrigiram este valor.
É uma época de transição, sem dúvida, para a Lei de Imprensa e a legislação correspondente civil e criminal. Apesar dos jornalistas em geral defenderem a idéia de liberdade absoluta para a Internet, estamos conscientes de que em algum momento esta também será alcançada pelo braço da responsabilidade social, como aconteceu com a imprensa e todos os meios de comunicação – que agora estão ingressando numa época de maior rigor no trato da dignidade do indivíduo. A legislação terá que acompanhar este novo tempo.
‘Se os órgãos da percepção mudam, os objetos da percepção parecem mudar’, disse William Blake, de quem podemos extrair esta idéia de mudança a ser aplicada aos meios de comunicação. Nossa companheira de viagem é a imaginação. Einstein achava a imaginação mais importante que a inteligência. A fase romântica do jornalismo ficou enterrada nos anos 1960 e 70. Agora, na época do profissionalismo cada vez mais exacerbado, temos que encontrar caminhos que assegurem a liberdade que o exercício do jornalismo tanto requer. Aí, vemos que Einstein tinha razão: precisamos mais do que nunca da imaginação.
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Jornalista