Na edição dominical da Folha de S.Paulo (27/6/04), Clóvis Rossi publica em sua coluna, sob o título ‘Leitores de bula’, uma visão da condução da economia brasileira, basicamente a partir da constatação de que o ministro Antonio Palocci havia se mostrado impressionado em Davos com a presença de ‘livros-texto’, e a partir daí desenvolve seu raciocínio e a matéria, de boa qualidade como de hábito com esse lúcido jornalista. Porém, eu me atrevo a acrescentar algo ao que escreveu Rossi, e que talvez tenha mais importância no contexto da análise da condução econômica do Brasil por ele escolhida.
Não podemos nos esquecer de que o ministro Palocci é médico. Na escola médica e na vida profissional, especialmente na época pré-internet ou outras formas de aprendizado eletrônico, cada área do ensino possuía ao menos um text book fundamental, por aqui literalmente traduzido como ‘livro-texto’: na Anatomia, o Gray’s Anatomy’; na Neuroanatomia, o ‘Carpenter’; na Fisiologia, o ‘Ganong’; na Farmacologia, o ‘Goodman and Gilman’; em Patologia, o ‘Robbins’; em Medicina Interna, rivalizando, o ‘Cecil’ contra o ‘Harrisson’, e por aí afora.
Uma coisa já deve ter se tornado clara: os tais livros-texto são conhecidos por seus autores ou editores, e há o costume de, mesmo falecido o autor original que deu o ‘nome’ ao livro, sucessores continuarem a obra, mantendo como título original, por exemplo, Cecil Textbook of Internal Medicine. Dessa maneira, o eventual deslumbramento do ministro da Fazenda em Davos poderia ser o equivalente a ir a um evento médico e encontrar os autores originais de livros sobre os quais tanto tivemos que nos debruçar e admirar. Isso é tão importante que mesmo eu tenho várias experiências semelhantes, talvez a mais retumbante de todas ocorrida em 1986, quando se realizou o Congresso Brasileiro de Neurologia, em São Paulo.
Uma das práticas nacionais é escalar um médico ligado ao Comitê Organizador para ser motorista, tradutor e mesmo ‘babá’ dos convidados internacionais. No citado Congresso, fui escolhido para ciceronear o americano Roger Rosenberg. Bem, um dos livros-texto básicos à época na formação de neurologistas na residência médica, pós-graduação etc. era justamente o ‘Rosenberg’. E eis que chego ao hotel onde estava ele hospedado e fico quase congelado quando sai do elevador o próprio ‘livro-texto’, o professor Rosenberg. Ao abordá-lo, como se estivesse frente ao papa (como somos colonizados e submissos…), a sumidade me cumprimentou efusiva e alegremente e pediu, por favor, que o chamasse apenas de ‘Roger’. Uau! Um dos pilares da minha formação era um simpático senhor, parecido com qualquer turista, que queria que o chamasse pelo primeiro nome apenas, eu, um mestrando brasileiro…
Levei quase um dia inteiro para conseguir chamar o homem de ‘Roger’, após dezenas de interlocuções que começavam com ‘Dr. Rosenberg’ e o pedido de ‘please, call me Roger’. E o que Roger queria, já que daria apenas algumas palestras e tinha muito tempo livre? Sabia que na época estava havendo uma exposição de ‘Tesouros do Kremlin’ no Masp e me fez levá-lo até lá (quis a todo custo pagar os ingressos, mas como o Masp não aceita dólares ao menos consegui obter os ingressos com minha moeda nacional…); também já tinha programado uma série de coisas que queria conhecer na Paulicéia, com guia e mapa na mão, e lá fui eu levando Roger aonde ele queria ir.
Resultado final
No fim do dia, novo susto: ele queria passar o dia seguinte conhecendo o Rio de Janeiro. Apesar de minhas imprecações relativas à violência (o típico americano de meias curtas e câmara fotográfica no pescoço não era exatamente a imagem que eu fazia do ‘livro-texto’), ele não se abalou. Tive que correr para a agência de turismo que dava suporte ao Congresso, e eles também ficaram em pânico, mas no sentido de conseguir passagem, tour e guia para o dia seguinte. Mas deu certo: Roger conheceu o Rio, e quando fui buscá-lo intacto no aeroporto acabei não tendo o infarto que imaginava que teria…
Isso ilustra essa questão de Davos: em congressos internacionais é comum cruzarmos com os tais livros-texto e, em vez de deuses que desceram do Olimpo, descobrirmos pessoas normais e civilizadas, que se comportam como qualquer um. Mas o deslumbramento é fato. Dessa maneira, acredito que quando Palocci falou em ‘livros-texto’ em Davos transferiu sua experiência de formação médica ao encontro do equivalente dos autores em Economia; mais do que o conteúdo e sua qualidade, a repentina presença física de nomes endeusados. E, como disse anteriormente, nosso espírito de colonizados, submissos e deslumbrados com coisas e pessoas de países desenvolvidos deve ter atingido nosso ministro, mesmo do PT.
Mas, como também apontado, é muito mais um item ligado às nossas experiências frente a autoridades que escrevem (e mais tarde aprendemos que nem sempre são tão certeiras e infalíveis assim), do que o ministro querer dizer que sabia apenas o básico da macroeconomia obtido nos ‘livros-texto’. Será? Minha impressão foi um pouco diferente da de Clóvis Rossi, mas o resultado final disso tudo não: talvez tenha todo mundo ficado mesmo entre o deslumbramento e a leitura dos livros-texto básicos, e daí estarmos economicamente como estamos…
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Médico, São Paulo