Assisti ao vídeo com o flagrante da relação amorosa entre a atriz Daniela Cicarelli e o empresário Renato Malzoni Filho, em uma praia no sul da Espanha, logo que ele foi divulgado na internet, em setembro de 2006. Os primeiros 100 segundos mostram os namorados trocando beijos, abraços e carinhos na presença de outros banhistas que não demonstram dedicar-lhes qualquer atenção especial. A edição e as legendas procuram enfatizar o caráter erótico da cena em detrimento do amoroso.
Após o centésimo segundo, abruptamente os banhistas desaparecem, a legenda anuncia ‘La pareja busca intimidad’ (o casal busca intimidade) e uma cena mostra o casal caminhando pela praia. Não se sabe ao certo quanto tempo caminham (um minuto? uma hora?); não se sabe ao certo o quanto se afastam dos banhistas. Trocam carícias mais ousadas. Novo corte na edição: sai a música de fundo e entra o que se supõe ser o som ambiente. O casal agora está no mar, não se sabe o quão distante da areia, mas as bóias ao fundo indicam que se afastaram bastante. Dificilmente a cena poderia ser captada pelo zoom das lentes de câmeras amadoras, mas o zoom de um equipamento profissional permite flagrar a dupla se relacionando sexualmente na água.
O filme termina com o casal retornando à areia e um abrupto corte nos 15 segundos finais leva-os de volta instantaneamente para junto dos banhistas, sugerindo que estes sempre estiveram por perto.
Julguei que o vídeo não faria sucesso na internet por não ser nada explícito. Diria mais: comportado demais, se comparado à diversidade de conteúdo pornográfico que pode ser encontrado na rede. Pueril engano. O vídeo não só fez um sucesso estrondoso, como despertou um sentimento muito diverso daquele que eu, na minha ingenuidade, acreditava ser o foco da questão: as pessoas não assistiram ao vídeo para se excitarem com a ousadia amorosa do casal, mas para julgá-los. Julgá-los por quê?
Linchamento moral online
A rigor, Daniela e Renato não praticaram qualquer crime. Ainda que tanto a legislação brasileira quanto a espanhola punam atos ofensivos ao pudor público, para que se possa caracterizar o crime é imprescindível que quem presencie a cena tenha seu pudor ofendido. Como nenhum banhista daquela praia reclamou ou mesmo notou as peripécias do casal naquele dia, certo é que crime não houve.
Sigmund Freud, em seu livro Totem e Tabu ensina que o fundamento da punição social pela violação de um tabu reside no risco da imitação. ‘Se a violação não fosse vingada pelos outros membros, eles se dariam conta de desejar agir da mesma maneira que o transgressor.’ A repercussão do vídeo na internet não se deu pelo pudor violado de quem assistiu às cenas inadvertidamente, mas pela identificação dos internautas com os protagonistas: é preciso punir o casal com a execração pública para garantir o regozijo de todos que cotidianamente reprimem seus instintos sexuais nas praias e retornam às suas casas e hotéis para extravasá-los.
Daniela e Renato estão sendo massacrados pela mídia difusa, com a complacência da mídia institucional, por terem desafiado um tabu. Um verdadeiro linchamento moral em rede internacional de computadores.
Privacidade e lugares públicos ou privados
O argumento pueril de que a mídia tem liberdade, e até dever, de informar, esconde o verdadeiro direito que se pretende tutelar em casos como este: o direito à fofoca. A liberdade de imprensa tem por fundamento o interesse público na informação. Vídeos como este não cumprem qualquer função pública de informar, pelo simples fato de que não há qualquer interesse público em se saber onde, como ou com quem Daniela Cicarelli mantém relações sexuais. Ao optar por satisfazer a curiosidade quanto à vida pessoal de celebridades, a mídia abandona sua função basilar no Estado democrático de direito de instrumento de informação de questões de interesse público e se converte em uma velha fofoqueira com recursos tecnológicos de última geração.
A sutil diferença entre informar e fofocar só pode ser plenamente compreendida quando se delimita com exatidão o direito à privacidade. Em princípio, é preciso desmistificar de uma vez por todas a relação entre privacidade e lugares públicos ou privados. Um ato de corrupção praticado por um funcionário público em sua residência é de natureza eminentemente pública. Não se poderia jamais impedir sua divulgação na mídia ao simples argumento de que o local era privado. Em contrapartida, uma relação sexual praticada em uma praia pública é um ato eminentemente privado, se evidentemente, como parece ter sido o caso de Daniela e Renato, foram tomadas as devidas cautelas para evitar os olhares dos banhistas.
O direito de não ser monitorado
O direito à privacidade, por outro lado, não é um privilégio garantido apenas a cidadãos anônimos. As celebridades, quando não estão desempenhando atividades de interesse público, também têm direito ao resguardo de sua privacidade. A Corte Européia de Direitos Humanos decidiu corretamente no caso Von Hannover v. Alemanha, no qual a princesa Caroline, de Mônaco, não obstante ser uma pessoa pública, deveria ter sua privacidade resguardada pela República alemã no que diz respeito à publicação pelas revistas daquele país de matérias e fotografias relativas exclusivamente à sua vida privada.
Então, como identificar os limites entre público e o privado? Em minha tese de doutoramento em Direito, na UFPR, destaco três características que em conjunto abarcam o que concebemos como direito à privacidade: direito de não ser monitorado, direito de não ser registrado e direito de não ter registros pessoais publicados.
A monitoração pode ser realizada pelos sentidos humanos com ou sem equipamentos tecnológicos. Se na sacada do meu apartamento vejo a olho nu uma bela moça trocando de roupa na janela, por óbvio não lhe violo a privacidade. Se, porém, valendo-me de uma câmera fotográfica com um poderoso zoom, fotografo a cena, certamente há uma violação de sua privacidade que só será maior se publicar a fotografia na internet ou em outro meio de comunicação.
Expectativa de privacidade?
Observar Daniela e Renato relacionar-se sexualmente na praia não é a mesma coisa que filmá-los e, por óbvio, filmá-los também não é o mesmo que publicar a gravação. São, portanto, variações de atentados às suas privacidades. Se, por óbvio, não se pode punir alguém por observar um casal se relacionando sexualmente em uma praia, o mesmo não se pode afirmar de quem filma a cena e, muito mais grave, de quem a divulga a terceiros.
São estes graus de privacidade que precisam ser adequadamente compreendidos para se evitar excessos. O direito à privacidade em cada um destes casos será determinado pela expectativa de privacidade que alguém pode ter em cada situação.
Um casal que mantém relações sexuais na praia não pode alegar expectativa de privacidade em relação ao direito de não ser monitorado. Isso não implica, porém, que tenham expectativa de que possam ser filmados e, muito menos, de que esta filmagem possa ser divulgada a terceiros. Há, certamente, por parte do casal, uma expectativa de que suas imagens em situações privadas não sejam publicadas, pois isto lhes causaria um evidente dano moral.
O analfabetismo tecnológico do Direito
Quando um direito é violado, em regra, duas soluções jurídicas são possíveis: a reparatória e a punitiva. No presente caso, se a publicação do vídeo gerou um dano à privacidade de alguém, é natural que se busque evitar o incremento deste dano, retirando o acesso público ao vídeo.
Ocorre, porém, que a internet, por sua própria arquitetura, torna tecnicamente impossível qualquer tentativa de filtragem de conteúdo privado disponibilizado na rede. Ainda que se possa, com sucesso, retirar todos os vídeos do casal Daniela e Renato do YouTube, por certo não se poderá excluí-lo de toda a internet, em especial de redes de compartilhamento de arquivo.
No presente caso, a desastrada decisão judicial que ordenou que o YouTube fosse retirado do ar foi inócua no seu objetivo de evitar o acesso ao vídeo, pois para que isso fosse possível não bastaria restringir o acesso ao YouTube, mas à própria internet em sua totalidade, o que seria inconcebível. A decisão, porém, é bastante indicativa do analfabetismo tecnológico dos profissionais do Direito brasileiro, que insistem em tratar a internet com meios coercitivos convencionais. A arquitetura da internet foi concebida para continuar funcionando mesmo em uma guerra de grandes proporções; não resistiria ela a uma ordem judicial?
A censura econômica cotidiana
É preciso que os profissionais do Direito entendam que se pode fechar sites, mas não se pode impedir que a informação circule na internet por outros meios, em especial pelas redes P2P. O uso de instrumentos jurídicos com este objetivo, longe de resolver o problema, só tende a aumentá-lo. Há uma inerente publicidade em torno deste tipo de decisão, em regra muito mal recebida pelos internautas, que vêem nelas resquícios de uma censura que, no presente caso, não existiria se fosse limitada à retirada exclusiva dos vídeos da rede. Aliás, seria uma contradição em termos se pensar numa censura de informação de cunho eminentemente privado.
Daniela e Renato tinham todo o direito à privacidade naquele canto deserto da praia espanhola onde mantiveram relações sexuais. Infelizmente, porém, o Direito não possui meios eficazes para lhes garantir uma solução reparatória. Tudo que resta ao judiciário é impor uma solução punitiva a quem lhes violou a privacidade para evitar que no futuro casos como este se repitam. Assim, o judiciário deveria impor ao paparazzo que os fotografou uma severa indenização por danos morais decorrentes da invasão da privacidade do casal e do uso indevido de suas imagens. Qualquer tentativa de retirar os vídeos da internet por meio de procedimentos jurídicos, no entanto, soa como vã e fadada ao fracasso, pela própria arquitetura da rede.
A reação furiosa do público diante do episódio, por fim, demonstra muito mais suas próprias frustrações por desejos reprimidos do que uma verdadeira indignação pela censura judicial. Gostaria de presenciar tamanha indignação diante da cotidiana censura econômica patrocinada pelas grandes emissoras de televisão, revistas e jornais nacionais quanto ao conteúdo ideológico das notícias que publicam. Mas, infelizmente, o grande público parece não se interessar tanto pelo direito à liberdade de informação quanto pelo direito à liberdade de fofoca que clamorosamente defendem.
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Professor da PUC Minas, doutor em Direito pela UFPR