Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Londrina em chamas

Concordo que o título é meio exagerado; contudo, não dá para deixar de fazer alguma analogia com o filme Mississipi em Chamas, relativo aos conflitos raciais na década de 1960 no sul dos Estados Unidos.

A imprensa noticiou que os sextanistas, formandos da Universidade Estadual de Londrina (UEL), estavam comemorando etilicamente a sua graduação em bar em frente ao hospital da faculdade – após terem ingerido uma quantidade razoável do combustível, entraram no pronto-socorro, causando baderna e assustando médicos, pacientes e funcionários. A reitoria da UEL abriu processo administrativo, proibiu os envolvidos identificados pelas câmaras de segurança ou testemunhas de colarem grau e correu a cerimônia apenas para os não participantes da baderna. Durante a tal cerimônia, os alunos se mantiveram em silêncio absoluto, em protesto.Os atingidos acionaram a Justiça, que concedeu liminar obrigando os que fizeram a confusão a colar grau – foi feita nova cerimônia, à qual compareceram todos os sextanistas, para tentar evitar a identificação publica dos envolvidos no episódio. Os responsáveis pela UEL acataram, evidentemente, a ordem judicial, mas declararam que, formados, deixavam de ter vínculo com a universidade e o processo administrativo automaticamente se extinguiria.

Jornais e revistas relataram os fatos, mostrando imagens. Mas curiosamente não fizeram maiores comentários, apenas alguns âncoras com cara de muxoxo.

Professores defendem o trote

Essa situação específica leva a algumas considerações muito importantes, evidentemente não relacionadas apenas à UEL.

Comecemos com o trote: ora, o famoso processo de admissão de calouros parece ter tido seu início ainda nos tempos medievais. Os alunos das velhas universidades européias majoritariamente pertenciam a famílias nobres e ficavam indignados com a entrada de alunos de estamentos sociais diferentes. Praticavam, então, o tal do trote, que não raramente terminava em morte. O que deve ser mais próximo dos nossos foi o tradicional trote da Universidade de Coimbra, quando os calouros até se afogavam em famosa fonte local. Foram proibidos os excessos, mas o espírito chegou por aqui.

Muita gente defende o trote, por ser a ‘integração’ dos calouros com os veteranos. E os calouros de hoje mal esperam se tornar os veteranos do ano seguinte, quando tendem a se comportar da mesma maneira animalesca.Os calouros acabam por ser constrangidos a participar do trote, a serem pintados, terem os cabelos raspados, embebedarem-se, humilharem-se pedindo esmolas nos faróis (para comprar mais bebida para os veteranos) e assim por diante. Cadê o espírito de integração? Para mim, se assemelha mais à definição de tortura da ONU, um tratamento desumano, cruel e degradante. E o calouro que se recusar terminantemente a participar de tais folguedos vai sofrer o diabo durante o ano.

Nos últimos anos apareceram tentativas de fazer um trote cultural, visita à faculdade e coisas do gênero, mas as autoridades universitárias dificilmente conseguem obstaculizar o trote tradicional. Na verdade, muitos professores mais velhos, até titulares e em cargos de direção, defendem o trote!

Foi ao cinema e metralhou a platéia

Passei pelo meu trote quando ingressei na faculdade, com direito a tudo, do corte dos cabelos a tinta. Não fiquei traumatizado por conta disso, mas me recusei a aplicar trote nos calouros no ano seguinte, por não concordar com a essência da questão. Se já no comecinho da Faculdade de Medicina se cometem esses abusos, e com apoio velado do corpo docente e médicos mais velhos, por que não deveria ocorrer uma comemoração alcoólica ao final do curso, mesmo barbarizando um ambiente hospitalar ? É cruel, mas tem ao menos lógica.

Também não se deve esquecer que vários estudos mostram que há elevado consumo de álcool e drogas ilícitas entre estudantes de Medicina, acima do que se observa naquela faixa etária e mesmo em outras atividades e/ou profissões. Costuma-se apontar a dificuldade do curso, o estresse, a grande carga horária como possíveis causas para isso. Pode ser, mas ainda é incipiente em nosso meio a presença de serviços de apoio psicológico e psiquiátrico ao aluno de Medicina – poucas faculdades o fornecem.

Ocasionalmente, casos mais graves ocorrem. Volta e meia morre algum calouro misteriosamente durante um trote – raramente se encontram culpados, fica por conta da fatalidade ou da frase comumente citada de que o falecido ‘não estava acostumado a beber’ e, por exemplo, caiu na piscina. Outras coisas são ainda piores, embora mais isoladas, como o caso do ex-estudante de Medicina do sexto-ano da Santa Casa de São Paulo, Matheus Meira, que na véspera da formatura foi armado a um cinema e metralhou a platéia. Está preso e condenado e não deverá se tornar médico.

Uma autoridade internacional

Mas por que ‘não deverá’? O fato não foi grave o suficiente para afastá-lo de vez da profissão? A congregação da Santa Casa já deliberou que não lhe vai conceder o diploma. Acontece que em nosso país, por lei, o aluno que for expulso de uma faculdade, por exemplo, pode perfeitamente se transferir para outra que o aceite (e o dinheiro abre portas, com certeza) e conseguir seu canudo. E com um diploma válido pelo MEC em mãos, os CRMs são obrigados, também pela lei que os regulamenta, a inscrever o indivíduo e dar-lhe um número para exercer a medicina! Os CRMs só podem punir médicos, não estudantes de Medicina. Dessa maneira, em tese, há a possibilidade de Matheus Meira conseguir seu diploma por qualquer outra escola médica do país e algum CRM será obrigado a lhe dar passe livre para exercer a profissão.

Com exemplos como esse, além do esperado corporativismo estudantil, o caso de Londrina não espanta. O pessoal bebeu e resolveu fazer uma festinha extra no hospital. Apesar de toda a bagunça e divulgação, a própria reitoria foi proibida pela Justiça de apurar e punir alguém. O pior é que o juiz não está errado – caso eles não colassem grau, estariam sendo condenados a priori sem apuração e julgamento. Só que isso impediu a punição administrativa pela faculdade e não há notícias de inquérito policial em andamento para eventual castigo no judiciário. Coisas do Brasil cartorial.

Mas é assim em todo lugar? Não, com certeza, não. Vamos a um exemplo dos EUA. Em meados da década de 1980, veio como convidado a um congresso no Brasil um médico americano e eu me tornei seu acompanhante (coisa comum, aqui entre nós, virarmos agentes de viagem, motoristas ou coisa parecida, de gringos colonizadores). O médico citado tinha pouco mais que minha idade, mas já era autoridade em nível internacional: full professor na Harvard Medical School, chefe de serviço de pesquisa e assistência médica no mítico Massachussets General Hospital, portador do doutorado verdadeiro (o PhD), que não é necessário para a carreira acadêmica em medicina, e autor de centenas de trabalhos publicados. Fazia assistência médica e pesquisa de ponta, sendo reconhecido como uma das maiores autoridades em sua área.

Filmando a governanta

Como convivemos por mais de uma semana, chegamos a nos tornar amigos: ele era um pouco tímido, mas, excelente didata, quis saber muitas coisas aqui do Brasil, chegou a me ensinar até em mesa de restaurante muita coisa útil. Voltou aos EUA, ainda não existia o e-mail, mas passamos a nos corresponder. Encaminhei-lhe alguns casos dificílimos que havia atendido em meu consultório e os pacientes desejavam uma indicação de alguém nos Estados Unidos. Certa época, querendo aumentar meus conhecimentos em dada área, ele conseguiu a autorização e me apresentou ao chefe do setor que eu pretendia estagiar na Harvard (não era a sua área específica), o que em muito me auxiliou.

Com o passar do tempo, nossos contatos foram diminuindo; soube que ele saíra da Harvard para assumir importante posição em outra grande escola médica de Boston, a Universidade Tufts.

Certo dia, alguns anos atrás, resolvi procurá-lo: não o achei no mecanismo de busca interna dos sites da Harvard e de Tufts, tampouco no Google (a não ser os seus trabalhos científicos publicados). Aonde teria ido parar aquele médico? Eis que consulta mais detalhada me leva ao principal jornal da cidade, o Boston Globe. A notícia me deixou estarrecido: havia uma denúncia de que o tal médico e sua esposa, já com os filhos casados e vivendo sozinhos em uma bela mansão, haviam contratado uma jovem governanta. E espalharam webcams pela casa toda, filmando a moça tomando banho, com o namorado e assim por diante. Não satisfeitos, jogaram fotos e vídeos na internet! Claro que a mulher ficou sabendo e, além de entrar com processos civil e criminal, denunciou o médico ao board de Massachussets, o equivalente ao nosso CRM, que suspendeu sua licença para exercer a medicina! Minha primeira reação foi de descrédito, que a governanta deveria ter inventado alguma coisa para arrancar dinheiro do rico médico, coisa comum nos EUA. Mas no próprio Boston Globe há entrevista com o advogado dele, dizendo que era verdade a história das webcams, mas ele estava realizando uma pesquisa científica. Ora, ora…

Que venham os touros!

A conclusão desse caso dos EUA é que lá o médico tem que ser ético e respeitar as leis o tempo todo, mesmo quando não está exercendo a profissão, caso contrário pode ter sua licença revogada. No Brasil, os CRMs só podem punir médicos que cometam infrações especificas durante o exercício profissional. Por essa razão, volta e meia alguém pergunta o que vai acontecer com Hosmany Ramos, o cirurgião plástico que trabalhou com Ivo Pitanguy, auferiu clientela da alta sociedade e, sabe-se lá por quais razões, resolveu entrar para o crime, cometendo assaltos, roubando carros. Está preso, mas logo deverá ser libertado: também em tese, como cometeu seus crimes não estando na função de médico, poderá voltar a exercer a profissão. Pode? Aqui, no Brasil, pode.

Dessa maneira, o caso de Londrina é apenas mais um exemplo de como essas coisas funcionam por aqui. E Londrina em chamas não vai ter seu incêndio apagado pela UEL ou pelo CRM, apenas se chover lá tanto quanto em Santa Catarina!

E nossa imprensa registrou o fato, mas não se deu ao trabalho de esmiuçar as causas, tampouco de criticar e sugerir mudanças na legislação. Se nem os meios de comunicação se preocupam, que venham os touros.

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Médico, mestre em neurologia pela Unifesp, ex-conselheiro do Cremesp, São Paulo, SP