Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

‘Lincoln’, a política como arte

As duas estatuetas – de melhor ator e direção de arte – que Lincoln recebeu na premiação do Oscar, no domingo (24/2), deverão ter alguma influência sobre sua performance comercial, na sobrevida como produto. O filme de Steven Spielberg já é um monumento inquestionável que se acrescenta aos sete mil livros, às gigantescas imagens esculpidas em mármore nos santuários políticos, aos clássicos cinematográficos de Griffith, Ford e à mitologia em torno deste Quixote de cartola – idealista lúcido, intenso, eloquente, convictamente democrata que foi o 16º presidente da República dos Estados Unidos.

Antes mesmo da premiação, a saga sobre Abraham Lincoln deixou marcas indeléveis na cena cultural brasileira: seus 150 minutos carregados de solenidade já foram assistidos por cerca de 700 mil espectadores em pouco menos de um mês. Não obstante os diálogos longos, prosa algo rebuscada (grande parte dos personagens são políticos exercitando discursos políticos), trama complicada, temática distante no tempo e no espaço, o silêncio das plateias é impressionante (este observador o assistiu no Rio e em São Paulo). Pipocas mastigadas suavemente, celulares quietos, por milagre ninguém quer compulsar os últimos tweets e mensagens.

Lincoln está sendo assistido no Brasil com uma reverência em grande parte estimulada pelo violento contraste entre a arte exibida na telona e a conjuntura que nos envolve: o lançamento do filme coincidiu aqui com os preparativos para a eleição da dupla de tropeiros que vão comandar o Congresso brasileiro.

Como arte

Como o roteirista Tony Kuschner e o diretor Spielberg não omitiram a descarada compra de votos para garantir a aprovação da 13ª emenda à Constituição que acabaria definitivamente com a escravidão nos EUA, o espectador-cidadão vive o filme em dois níveis: o ideal (representado pelo relato histórico) e o real (o seu amargo conhecimento da vida política nacional).

O presidente Lincoln tinha a clara percepção de que a emenda precisaria ser aprovada rapidamente e a servidão humana erradicada do país antes que a Guerra Civil acabasse. Caso contrário, a escravidão seria mantida nos estados do sul e novas matanças ainda mais sangrentas se repetiriam. Os congressistas céticos e recalcitrantes precisavam ser comprados, pressionados ou persuadidos de qualquer maneira. Mesmo os emissários sulistas que vinham para render-se precisavam ser impedidos de chegar a Washington antes de consumada a votação. A abolição da escravidão precisava preceder a capitulação e a assinatura da paz.

Siderado, o espectador acompanha o velho dilema filosófico sobre os fins que justificam os meios, mas não vacila: este vale-tudo é justo, acabará com a escravidão e encerrará a Secessão definitivamente. O assassinato de Lincoln (mostrado indiretamente) dá à tragédia a função de confirmar a justeza de sua estratégia e coroar a sua sabedoria.

Lincoln é o cinema como arte e como educação política. Exige do espectador o que ele tem de melhor e, em retribuição, oferece-lhe a oportunidade de reencontrar-se com a porção sublime da política: o idealismo.

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