Quando vi nos jornais a foto de Lula saboreando bombom de cupuaçu e jogando papel no chão, em 26 de novembro, fiquei indignado. Não com Lula, que já tem preocupações demais para ficar pensando nessa bobagem, mas com os coleguinhas jornalistas que, não encontrando nada de mais berrante nos discursos, resolvem fazer uma tempestade em torno do pequeno deslize do presidente da República.
Quis escrever aos ouvidores dos jornais, perguntando se não haveria, nesse mundo de Deus e de Lula, com milhões vivendo abaixo da linha de pobreza, outras cenas mais – digamos – jornalísticas. No domingo seguinte fui a um concerto ao ar livre com a Orquestra Sinfônica da USP, no Parque Villa-Lobos. Localizado entre a USP e o Alto de Pinheiros, o parque é freqüentado por moradores de uma região nobre. O programa se chama Acorde para o Meio Ambiente, já que o parque é administrado pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente. Em todo evento, há enorme preocupação com a preservação da natureza e a responsabilidade social, sendo divulgados por escrito e por alto-falantes os princípios de defesa do ambiente.
Entre as dicas do programa há conselhos tipo não jogue lixo pela janela do carro, leve sacos de lixo quando for à praia, compre de preferência agendas, cadernos e livros de papel reciclado. Tudo muito bem, tudo muito natural. Logo no começo, enquanto a orquestra abria o programa com o Hino Nacional, a mocinha ao lado, com camiseta Direito USP, amarrava e desamarrava várias vezes os longos cabelos, como se quisesse mostrar a todo mundo que são lindos e sedosos. E provavelmente naturais. Quando surgiu o primeiro movimento da 5ª sinfonia de Beethoven, aquela que faz tan-tan-tan-tan, a moça prendeu o cabelo, não sei se com medo da dramaticidade dos acordes. Então ela se lembrou de telefonar à mãe e avisar que se atrasaria para o almoço. O concerto estava apenas começando e já passava de meio-dia. Comeria qualquer coisa, não se preocupasse.
Por um momento, pensei que ela deixaria o telefone ligado alguns minutos e explicaria a música. Não. Ela não fazia mestrado em Música na USP. Chega então uma madame com gigantesco cachorro. Tenta sentar-se numa cadeira vazia, mas o cachorro chega primeiro, forçando-a a iniciar um diálogo tipo desce, desce daí. E o cachorro, mostrando obediência, desceu, para a sorte dos espectadores. Já pensaram se ele resolvesse latir mais alto que os trombones de Beethoven?
Para consolo de Lula
Antes de terminar o tal primeiro movimento chegam pesquisadoras de peruca verde para distribuir um questionário. Os organizadores do evento querem saber do público se está gostando, se já conhecia o parque e se os produtos dos patrocinadores, uns 10, são de boa qualidade e politicamente corretos. Começa a terceira música, Villa-Lobos, e a moça novamente solta e prende os cabelos. Antes de tocar Piazzolla, o maestro Carlos Moreno conta que um dos músicos é argentino e recomenda, nos ensaios, pensar no corte habitual do longo das dançarinas de tango. É relaxante, segundo o violinista Nunes. Quase pedi um aparte ao maestro para dizer que não precisamos nada disso. É só olhar para os lados. Há muitas atletas brasileiras fazendo cooper ou em bicicletas. Todas com seus celulares, todas combinando algum encontro, todas exuberantes! Nem precisa de corte lateral no vestido.
O short nunca teve tradução tão literal. Tentava ouvir as Bodas de Fígaro, de Mozart, que o maestro advertira ser a última do programa, sem possibilidade de bis, quando a jovem estudante resolve sair, não sem antes ajeitar pela última vez os longos cabelos e pedir licença, respeitosamente. Ao fim do concerto, uma rede de supermercados tenta vender seu cartão. Não é preciso preencher nada, dizem as divulgadoras. Basta fornecer nome e telefone que no dia seguinte alguém entraria em contato. A empresa, naturalmente, era uma das patrocinadoras do concerto.
Em seguida, almoço em casa de uma amiga. A mesa de vidro impecavelmente limpa, o prato e os talheres simetricamente dispostos, resolvo descansar o copo de cerveja propositadamente fora do recipiente adequado. A dona da casa se levanta e passa um pano cuidadosamente no fundo do copo e na mesa. No segundo gole, repito a operação. Ela repete a limpeza. No terceiro gole evitei a provocação.
Fica a pergunta, para consolo de Lula: jogar papel no chão na Amazônia é a mesma coisa que levar cachorro a um concerto? É preciso limpar a mesa a cada gole de cerveja?
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Jornalista, São Paulo