Ao que tudo indica, teria acontecido, à moda Talleyrand-Metternich, grande astúcia latino-americana, combinada entre Lula-Chávez-Kirchner contra W. Bush, cortando, completamente, as razões contidas no artigo de Clóvis Rossi, ‘Lula desce do muro, para o lado de Bush’, Folha de S. Paulo (sábado, 10/3). Pode muito bem ter pintado o oposto do que descreve o grande repórter do jornal paulista.
Aparentemente, Lula, como afirma Rossi, teria fechado acordo do álcool com o presidente norte-americano para esvaziar politicamente Hugo Chávez, de quem Bush depende, não se sabe até quando, para abastecer 15% do mercado dos Estados Unidos de petróleo venezuelano. A reação de Chávez e seu parceiro Kirchner, em Buenos Aires, reunindo trinta mil pessoas para protestar contra a armação Bush-Lula, sinalizaria abalos na unidade do Mercosul e dificuldades para a formação da Comunidade Sul Americana das Nações (Casa). A Casa Branca, enfim, alcançaria seu objetivo de esvaziar os esforços das lideranças políticas do continente e esvaziar o complô latino-americano contra a Alca, armada por ela. O Itamarati se prestaria a tal papel? Implausível.
Banco Sul Americano
Essencialmente, no entanto, as aparências, como sempre acontece, enganam. Enquanto Lula e Bush se reuniam em São Paulo, a ministra da Fazenda da Argentina, Felisa Miceli, e o do Brasil, Guido Mantega, acertavam a proposta de criação do Banco Sul Americano (BSA), inicialmente, formulada por Hugo Chávez, abraçada, em seguida, por Kirchner, mas sob reservas de Lula, até aquele momento. Tais resistências, depois de muitos vais-e-vens, acabaram sendo eliminadas. Predominou o interesse maior da unidade latino-americana, contido, inclusive, na constituição brasileira.
Mantega saudou a criação do BSA e, ao mesmo tempo, anunciou, com sua colega argentina, que os dois países suprimiriam, paulatinamente, a utilização do dólar em suas transações comerciais em favor das moedas locais. Emergiria, no rastro do Banco Sul Americano, o perfil da nova moeda, quem sabe o ‘sul-americano’, tendo o BSA, a exemplo do Banco Central Europeu (BCE), instrumento de ação da Comunidade Econômica Européia (CEE), o papel de emprestador de última instância, verdadeiro promotor da integração econômica na América Latina e fator de equilíbrio do balanço de pagamentos dos países integrantes da Casa.
Unidade precária
Assim como BCE, com o euro à frente, exerce tal papel na promoção do equilíbrio monetário, fiscal e econômico europeu, marcharia o BCA para uma nova etapa histórica e econômica da América do Sul, rumo, ao longo do século 21, à independência econômica latino-americana, para completar a independência política continental alcançada no século 18.
Tombariam ao chão, portanto, as razões levantadas por Clóvis Rossi para concluir favoravelmente a dois equívocos clovisrossianos: um, a aliança definitiva entre Bush e Lula; dois, o distanciamento de Lula e Chávez. Na teoria, talvez, sim, Rossi estivesse correto. Na prática, provavelmente, não. Lula-Chávez-Kirchner acelerariam a realpolitik latino-americana por meio do braço financeiro do BCA, diante da disposição norte-americana de incentivar acordos bilaterais de comércio entre os integrantes do Mercosul, minando a unidade ainda precária deste.
Força do dinheiro
No final das contas, nada mais insatisfatório, portanto, para a diplomacia guerreira norte-americana conduzida por Condoleezza Rice, e nada mais enganador do que as conclusões de Rossi. Estas poderão revelar-se falsas em abril quando Lula for a Caracas e anunciar, na oportunidade, seu apoio à idéia inicial de Chávez, adiantada, extra-oficialmente, por Mantega e Miceli.
Configurar-se-iam, na prática, ensinamentos simultâneos de Marx e Keynes. Quando uma idéia ganha força material, diz o autor de O Capital, torna-se irresistível sua materialização. Já o mestre de A Teoria Geral do Juro e da Moeda teria ensinado aos poderosos latino-americanos do momento que o caminho da independência econômica não seria outro senão o da busca do fortalecimento da soberania sobre a moeda regional, no contexto monetário global.
Flexibilidade supera idiossincrasias
Trata-se da forma indispensável de alcançar vantagens relativas, crescentemente ampliadas nas relações de trocas cambiais no contexto coletivo, para favorecer individualidades econômicas imbricadas entre si. Estariam sendo fincadas estacas firmes no âmbito de uma economia globalizada fundamentalmente monetária. Nada mais desagradável para Washington, que já enfrenta um dólar tatibitate, dependente do socorro dado pelos superávits comerciais chineses, favorecidos, por sua vez, pelo crescente déficit fiscal norte-americano, que mantém a moeda de Tio Sam sob a desconfiança do mercado mundial.
Rossi ficou com a aparência. Viu Lula juntar-se com Bush. Virou as costas à essência: o jogo maquiavélico de Chávez-Kirchner-Lula, que não é necessariamente anti-americano, mas, preferencialmente, latino-americano. Lula continuaria, portanto, mantendo sua característica ambígua, que o repórter, em seu artigo, diz ter sido abandonada, para cair, definitivamente, nos braços de Bush. Não parece ser o caso.
O titular do Planalto, que na semana passada se rendeu à bancocracia – responsável por jogar a poupança popular para baixo dos rendimentos especulativos com os títulos da dívida pública interna, ao mesmo tempo em que mandou os governadores se financiarem junto à banca privada, colocando-os na boca dos famintos leões do mercado financeiro –, continuaria, como os fatos ressaltam, seu jogo de gato e rato, apostando suas fichas tanto aqui, na Casa, como lá, na morada de Tio Sam. Persegue, obstinadamente, a manobra de dar uma no cravo outro na ferradura, na linha da recomendação de Kikuchi, em Estratégia, quando a flexibilidade supera as idiossincrasias individuais e coletivas, para além das ideologias.
Teoria da relatividade
É sempre perigoso, quando não fatal, embarcar nas afirmações absolutas, quando se sabe, como já ensinou Einstein, pai da teoria da relatividade, que tudo é absolutamente relativo. Sem dúvida, as ambigüidades lulistas são freqüentes, quase absolutas, mas igualmente carregam a marca da relatividade. Sendo político orgânico e senhor de trilhas vividas por longas datas, o presidente brasileiro, inteligente e assessorado pela histórica sagacidade dos homens do Itamarati, sabe que a realidade compreende os dois lados. Estes, por seu lado, se interagem, dialeticamente, em processo de negação, pois, como destaca Hegel, a negatividade é a própria realidade.
Ao seu modo, Lula, está sempre expondo o problema. Outro dia, na Bahia, dizia aos baianos e baianas que o aplaudiam que deveriam apoiar o governador Jacques Wagner, mas também cobrar dele as promessas. Ao mesmo tempo, para atenuar as pressões sobre o executivo estadual, destacava igualmente que esse povo, antes de cobrar, deveria dar um tempo para que as coisas acontecessem. E assim por diante.
Eis a marcha registrada do sertanejo-sindicalista-presidente, que joga agora esse jogo dialético no campo internacional, explorando o fato de que o Brasil é, como destaca o empresário Sebastião Gomes, do Distrito Federal, o novo rico do mundo, diante de suas imensas potencialidades energéticas naturais. Assim, dizer, taxativamente, como fez Rossi, que Lula largou Chávez e abraçou Bush, é temeridade.
Ocupação territorial
Não se deve esquecer que, historicamente, a estratégia norte-americana tem sido a da ocupação territorial a fim de assegurar aos Estados Unidos matérias-primas necessárias à promoção do colosso econômico norte-americano. A América do Sul, considerada por Tio Sam seu quintal histórico, entra nesse rol, para que possa, algum dia, ser alvo de instalação de bases militares norte-americanas no continente em escala crescente.
É ingenuidade imaginar que tal objetivo não esteja sempre presente por trás dos sorrisos dos presidentes norte-americanos que visitam os países latino-americanos, como faz Bush, agora, em sua maratona anti-socialista. Nesse sentido, Lula mostra-se craque, até agora, por não ter caído na cama de gato que a Casa Branca tentou armar, recentemente, buscando levá-lo, como fizeram os radicais do PFL e do PSDB, a um endurecimento contra Evo Morales, presidente da Bolívia, quando este nacionalizou as empresas petrolíferas.
A ira da direita
A pregação excitada de Geraldo Alckmim durante a campanha eleitoral não escondia as intenções mais íntimas de Tio Sam: jogar duro contra o governo boliviano, criando impasse diplomático. As colunas mais destacadas da grande imprensa, na economia e na política, vocalizavam o desejo norte-americano, indiretamente manifestado pela Casa Branca. Esta, é verdade, reconheceu que a nacionalização é um direito soberano do país. Sequer chiou contra o mesmo gesto feito, recentemente, pelo presidente Hugo Chávez, da Venezuela. Mas, aplaudiu a ira da direita brasileira, que fica à direita do Partido Republicano, dos Estados Unidos, de intensificar conflitos entre Brasil e Bolívia até o limite do possível e do impossível.
Se Lula, como destaca Clóvis Rossi, estivesse, realmente, na canoa de Bush, teria caído na armadilha. Que aconteceria?
O Iraque seria aqui
É bom lembrar da recente história da invasão do Kuait pelo Iraque de Saddam Hussein sob incentivo da Casa Branca. O ditador iraquiano caiu como passarinho na arapuca do Pentágono, monitorado pelas indústrias bélicas e espaciais.
Por acaso os sensores da economia de guerra norte-americana não perceberam o deslocamento de tropas de Saddam pelo deserto? Não seriam falsamente precisos posteriormente ao detectarem que Saddam tinha escondidas em depósitos secretos armas nucleares, algo fantasioso, como se verificou depois, quando o serviço que os Estados Unidos queriam realizar, a derrubada de Saddam, havia sido concluído?
O besta prepotente foi lá, invadiu o Kuait, e o que aconteceu? Os norte-americanos correram para ajudar o governo kuaitiano, deram o xeque-mate no ditador iraquiano e cobraram da elite do Kuait o alto preço de instalarem, no pequeno país rico em petróleo, uma base militar norte-americana pelos serviços prestados. Esse, fundamentalmente, era o objetivo de Tio Sam.
A retórica guerreira
O que, então, aconteceria, trazendo semelhante problemática para o terreno latino-americano, se Lula jogasse duro, como queria a Casa Branca e os tucanos-pefelistas-radicais-golpistas, como reação à nacionalização da Petrobrás em território boliviano por Evo Morales em seu ato soberano?
Dá para imaginar. Chávez romperia com Lula, atrairia, certamente, o apoio de Kirchner, que está levando dólares do petróleo venezuelano para rolar os papagaios argentinos – cujo financiamento encontra-se bloqueado pela banca internacional depois do calote kirchneriano – e jogaria o presidente brasileiro na boca da discórdia latino-americana, acusado de vendido a Tio Sam. Emergiria profunda discórdia latino-americana na forma de uma divisão irremediável. As tropas brasileiras se acantonariam nas fronteiras com a Bolívia e a Venezuela. Começaria a retórica guerreira.
Músculos e força
Haveria cenário mais luminoso do que esse aos olhos do Estado Industrial-Militar Norte-Americano, assim denominado por Eisenhower em 1960, para estender seus tentáculos em terras sul-americanas? Lula teria criado a cabeça de ponte necessária reivindicada pelos norte-americanos para instalar base militar dos Estados Unidos na América do Sul, talvez em território paraguaio, próximo ao Aqüífero Guarani, a maior reserva subterrânea de água doce do mundo, na qual Tio Sam mira insistentemente. O Mercosul e a Casa, desnecessário dizer, iriam aos ares.
Nada mais satisfatório para a Casa Branca que, sem as tensões guerreiras no continente, expedidas por eventuais bases militares norte-americanas no continente, buscar minar esse mercado sul-americano por meio de acordo bilaterais. Tal jogo mal esconde o desejo real de Tio Sam de arregaçar as mangas e mostrar logo seus músculos e sua força.
A questão básica, como bem destaca o economista Reinaldo Gonçalves, em ‘Road show’, também na Folha, 11/03, é geopolítica-estratégica, especialmente, depois do fracasso do modelo neoliberal na América Latina após a crise da década de 1980, que levou à criação do Consenso de Washington.
Sem a motivação guerreira, tanto ao gosto de Tio Sam, para criarem em solo sul-americano as bases militares sonhadas pelo Pentágono, a Casa Branca se volta para a biomassa. Incentivando-o, tentaria livrar-se, ao longo dos próximos anos, do petróleo venezuelano. Essa saída, porém, é uma faca de dois legumes.
Haveria, sim, expansão extraordinária do agronegócio, de um lado, mas de outro, como essa expansão se dá em cima de uma estrutura produtiva organizada na base da super-concentração de renda e de relações sociais da produção pautada na exclusão social, ocorreria, a materialização do que Mauro Santayana, no JB, destacou: o grande canavial latino-americano neocolonizado na globalização.
Pressões inflacionárias
Lula estaria cuidando, como destaca o economista, apenas de viabilizar negócios por meio do incremento de exportações em cima de uma estrutura produtiva concentradora de renda, enquanto, ao mesmo tempo, promoveria o que W. Bush exigiu no Uruguai, ou seja, liberação comercial total. A tradução disso, no plano das relações de troca capitalista, representaria o sucateamento industrial, diz Reinaldo, mesmo argumento utilizado, no Valor, por Delfim Netto e Luíz Gonzaga Belluzzo.
Lula mostrou-se conhecedor desse perigo, em sua entrevista no Café com o Presidente, na Radiobrás, segunda, 12/03, ao fazer eco às preocupações desses três economistas, mais às do deputado Fernando Gabeira, relativamente às ameaças de desequilíbrio ecológico. O titular do Planalto destacou que o acordo acertado com os Estados Unidos de exportar álcool não se dará de uma hora para outra. Vai demorar. E que o governo é consciente da necessidade de preservação do meio ambiente e do equilíbrio entre a produção da biomassa e dos alimentos, para evitar pressões inflacionárias futuras. O jogo, portanto, está em curso e não se pode, a priori, afirmar peremptoriamente que vai dar nisso ou naquilo.
Santo e demônio
O presidente, como mostram os fatos, cuida de manter seus pés em dois muros, no do Fórum Social (dos pobres) e no do Fórum Econômico (dos ricos). Desmente que agora, com o capital social que acumulou, expresso na reeleição, tirou o pé do primeiro e ficou no segundo, exclusivamente, alinhando-se a Bush, como assegurou Rossi. Como o titular do Planalto, inteligentemente, não caiu, até agora, na armadilha bushiana e continua acendendo uma vela a Deus e outra ao Diabo, a assertiva do consagrado repórter da Folha ficou prejudicada.
Infelizmente – ou felizmente – é aquele tal negócio do jogador de futebol. Se ficar pesado, de salto alto, como foi o caso de Ronaldo, o fenômeno, a vaca vai pro brejo. Manter-se, permanentemente, na ponta dos cascos, é o mandamento número um do jornalista. Esse é, ao mesmo tempo, seu santo e seu demônio.
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Repórter do Jornal da Comunidade, Brasília, DF