Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mais legal do que o real

A objetiva do repórter-fotográfico Caio Guatelli tinha outro foco quando os colegas aceitaram fotografar uma cena montada na favela Alba, na capital paulista, especialmente para a imprensa. Assim como um político já sabe a hora exata de fazer um depoimento-bomba para entrar no Jornal Nacional, os homens de elite da Polícia Militar souberam montar seu marketing para divulgar uma Operação Saturação por tropas especiais. Ou seja, a invasão de uma tropa de choque numa favela. Por acaso, reduto do ‘Biroska’, o Edilson Borges Nogueira, do PCC.

A Globo chegou antes e registrou a invasão em grande estilo. Mas os jornais só souberam da pauta pela Globo, vieram tarde. Nem tão tarde. Soldados fincavam bandeiras no chão, Ronaldo Marzagão, da Secretaria de Segurança Pública, ainda estava no centro da operação, as tendas dos PMs continuavam armadas e uma bandinha ilustrava a ação com sax, corneta e tambor. Só que a incursão na favela Alba já havia acontecido e só a Globo cobriu. E agora? Agora é o que Eric Hobsbawm denuncia há anos; agora é a realidade fabricada para o foco da imprensa, a janelinha da TV, o quadradinho do jornal. Porque o público engole mesmo qualquer coisa.

Não se sabe se os fotógrafos sugeriram ou se foi a PM que ofereceu. O certo é que repetiram a cena, copiaram a realidade, atuaram como soldados na guerra do Iraque. Para serem devidamente fotografados. Equipada com coletes à prova de bala, lá se foi a nossa imprensa fotográfica adentrar a favela, antecedida por três PMs e rastreada por mais três. Foram registrar a mentirinha que esta semana saiu estampada nos jornais: 667 homens armados , mais 221 viaturas, 67 cavalos, 2 cachorros e um helicóptero Águia 6. Impressionante.

Denunciou a fraude e voltou

Mas Caio Guatelli ficou para trás. Não quis entrar. Sua objetiva não ia registrar uma encenação, fosse para qualquer fim. ‘Fiquei do lado de fora do teatro’, disse ao Observatório.

Sua objetiva, ao contrário, captou não mais de 100 homens (‘não vi os tais 600’) e apenas três cavalos (‘não vi os 67’), e interessou-se pelos vôos rasantes do helicóptero que vinha com três PMs dependurados que saltavam no vazio e desapareciam para, em instantes, outros três homens repetirem o pendura-despendura. ‘Somos centenas de policiais’, informou a Guatelli o coronel Joviano, comandante da operação. O fotógrafo foi atrás, no ponto cego onde o Águia 6 desaparecia, e constatou que eram 9 homens em grupos de três que saltavam de um lado e se dependuravam de outro, dando a impressão de um batalhão.

‘Puro teatro’, constatou Guatelli. ‘Quando ouvi a ordem de parar o espetáculo, eu sabia que a imprensa devia estar indo embora… e estava mesmo.’

No dia seguinte (quinta-feira, 13/9, caderno ‘Cotidiano’, primeira página), a Folha de S.Paulo estampava texto e fotos de Guatelli: ‘Por marketing, PM repete invasão de favela’. Denunciou a fraude e voltou lá no dia seguinte.

‘Aprendi para nunca mais’

‘O circo ainda estava montado e eu, enojado com essa relação promíscua imprensa-poder, indignado com a forma pela qual a imprensa é usada e se deixa usar’, disse ao OI.

Pior para Guatelli foi o estrago: o representante da prefeitura, para aproveitar a imprensa, resolveu derrubar um barraco onde havia uma borracharia que estaria em área ilegal. E derrubou. Só que, junto, arrasou uma casa acoplada onde moravam 18 pessoas sustentadas por um salão de cabeleireiro, também derrubado. Guatelli conversou com a dona do salão.

Pobre há muito tempo, ela já havia sido despejada outras vezes, mas esta semana chorou porque a assistente social não veio avisar sobre o despejo um mês antes.

Guatelli é paulistano de 29 anos e tem 11 de profissão. Um dia antes do assassinato do colega Luiz Antônio da Costa, em 2003 (ver aqui), esteve na mesma cobertura da invasão de um terreno da Volkswagem, em São Bernardo do Campo, por um grupo de sem-terras. E aprendeu no batente a nunca mais ceder à pressão dos editores por uma foto assim ou assado desde que pediu ao motorista do jornal para ficar de costas, embaixo de um termômetro da Avenida Paulista, para ilustrar, na primeira página da Folha, uma matéria sobre o frio da cidade. O então ombudsman do jornal, Bernardo Ajzenberg recriminou a ‘montagem’ e Guatelli ficou arrasado. ‘Aprendi para nunca mais. Nenhum assessor de imprensa, de político ou de atriz mais famosa me diz como fotografar ou o quê.’

Na sua crítica diária de 13/9, o atual ombudsman da Folha, Mário Magalhães, comentou a coragem de Guatelli na favela Alba. E os leitores da Folha agradeceram.

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Jornalista