Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Mais uma oportunidade perdida

A edição nº606 da revista Época teve como capa a procura, por grupos farmacêuticos, por aquilo que seria uma espécie de ‘viagra feminino’. Umas das matérias, escamoteadas para as últimas páginas, vinha com o seguinte título: ‘Será que vai colar?’ E a linha fina: ‘Uma nova fórmula tira o efeito entorpecente da cola de sapateiro e poderá pôr fim a seu uso como droga’.


Na foto que ilustra a matéria e ocupa metade da página tem-se um menino, visto por cima, sozinho no meio daquilo que parece ser uma praça. O garoto segura um objeto feito de plástico e a impressão é que ele está se drogando. Pode-se imaginar, então, que esse jovem – que representa tantos outros na mesma situação – será o personagem principal da história, porém, infelizmente, não é isso que ocorre…


A matéria é construída de forma bem técnica e até incrivelmente superficial, dada a complexidade do assunto, que envolve problemas como dependência química, exclusão social e violência.


Começa com o óbvio, atestando que a droga é bastante usada pelos ‘jovens de rua’, aponta o baixo preço da bisnaga (R$ 4,00) como o motivo da alta disseminação do consumo. Depois trata das tentativas, frustradas, de restringir a venda ou a quantidade de tolueno, o causador do ‘barato’ na cola de sapateiro. Finaliza o primeiro parágrafo com a afirmação categórica de Joel Amorim, representante da empresa que desenvolve a nova fórmula: ‘Na nova fórmula, a inalação não surte efeito.’


Um amenizador do problema


No segundo parágrafo, os personagens centrais são os sapateiros e pintores, expostos, por obrigação do ofício, ao contato constante com a cola. Também é explicado a forma como o tolueno age no organismo e os danos causados. A fala do toxicologista Anthony Wong serve de olho da reportagem: ‘Há pintores que, nas férias, precisam ir na loja sentir o cheiro da cola.’


Os ‘jovens de rua’ de rua são lembrados na parte final do texto, puxados pela memória em forma de números: ‘Um levantamento do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), realizado em 2007 com 2.807 jovens de rua em 26 capitais brasileiras, constatou que 19,1% inalavam cola regularmente’ e ‘Em outra pesquisa, com 48.155 alunos da rede pública de ensino, 15,5% dos estudantes declararam ter usado a droga’.


A reportagem termina de forma objetiva, trazendo dados sobre o Chile que revelam que a retirada do tolueno da composição da cola foi eficiente na diminuição do consumo na forma de droga.


Fatores como exclusão social, falta de oportunidades e expectativas de vida, ócio, fome, maus tratos e abandono, normalmente apontados como os principais motivos que levam ‘um menor sem lar’ a usar droga, sequer são citados. O tratamento recebido, meramente estatístico, funciona como um amenizador do problema. Os números muitas vezes não são o melhor recurso para apresentar uma realidade, como fica evidente no decorrer do texto.


Mais uma oportunidade perdida


É do conhecimento de todos que menores de rua usam cola de sapateiro para se drogar e não é só menor da minha ou da sua rua que faz isso; há muitas outras ruas e praças nas quais podemos observar tais cenas. A revista, portanto, só traz à memória esse fato que, de tão conhecido, parece ser algo comum, um contingência da realidade, quando sabemos que não é bem assim. Problemas como falta de políticas públicas, descaso da população, famílias pobres e desestruturadas são alguns produtores dessas tristes realidades e não podem ser entendidos como normais. É verdade que é apresentado, no penúltimo parágrafo, um lamento pelo fato da cola de sapateiro funcionar como porta de entrada para outros vícios: ‘Não é um problema menor. (…) A cola de sapateiro é uma das portas de entrada de crianças e adolescentes nas drogas.’ Será que a intenção é dizer a mudança na composição vai impedir que os adolescentes e crianças entrem no mundo da droga, já que a ‘porta de entrada’ vai ser fechada? Ou a situação de penúria é simplesmente ignorada, assim como os menores nos sinais de trânsito ou banco de praças?


A dependência química é um problema gravíssimo que causa malefícios não só nos sapateiros – talvez a Época tenha se esquecido disso – mas também nos menores, privando-os de um desenvolvimento social, educacional e psicológico adequado. É perigoso tratar uma questão como essa de forma trivial e passageira, ao invés de despertar a sociedade, de propor ações e criticar a postura passiva frente a algo tão alarmante.


O debate sobre a vida dos chamados ‘jovens de rua’ e relação deles com as drogas, a falta de perspectiva de vida e violência que deveria ser (mas não é) constante na mídia, poderia ter sido proposto – ainda mais quando se tem um gancho como esse. É lamentável ver mais uma oportunidade perdida.


PS: A edição da revista é relativamente antiga, aproximadamente dois meses, mas a necessidade e a ausência do debate continuam presentes.

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Estudante de Jornalismo, Unesp, Bauru, SP