Se no ano passado a decisão do Conselho de Administração de Defesa Econômica (Cade) sobre as mudanças na licitação dos direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro foi pouco comentada, o processo de produção do edital para as temporadas de 2012 a 2014, cuja licitação deve ocorrer neste mês, foi muito comentado, especialmente pela divisão dos clubes nacionais.
Há treze anos, como a própria Rede Globo destacou em seu comunicado ‘Em respeito ao torcedor, tornamos pública a nossa resposta ao Clube dos 13’, a rede de emissoras tinha o privilégio na negociação de direitos de transmissão do futebol no Brasil. Ela tinha a opção de cobrir qualquer proposta após a abertura dos envelopes, o que praticamente a efetivava como vencedora.
Os clubes de futebol passaram a ter uma exacerbada dependência do dinheiro oriundo dos direitos de imagem, chegando ao ponto de pedirem a antecipação dessas receitas para pagar algumas das dívidas mais imediatas. Em troca, além de ter publicidade para pagar todos os gastos de transmissão com sobras, dada a audiência e o público específico do futebol, a emissora manda e desmanda nos horários das partidas, a ponto de elas começarem depois das 22h por causa da novela das 21h, sem se preocupar se o torcida tem ou não que pegar uma condução ou acordar cedo para trabalhar no dia seguinte.
A divisão dos clubes
A Rede Globo, termina seu comunicado, após tecer críticas às mudanças realizadas pelo Clube dos Treze – totalmente influenciadas pelas obrigações tomadas junto ao Cade, cuja multa por descumprimento é de R$ 1 bilhão –, demonstrando o que deveria ser normal e real, mas que nunca foi:
‘Assim, acreditamos que será adequadamente observada a importância da TV aberta, como meio de comunicação gratuito e de maior abrangência/audiência nacional, e privilegiada a parte mais importante do Projeto Futebol: o torcedor brasileiro’.
A decisão do Cade no ano passado, num processo que se arrastava há anos, proibiu qualquer benefício a quem quer que seja na licitação pelos direitos de transmissão, entendendo que tais mecanismos proibiriam a possibilidade de livre concorrência, como de fato acontecia. O Clube dos Treze até que tentou na primeira versão do edital manter ‘a longa parceria’, com o benefício de margem de 10% para a emissora da família Marinho, artigo que teve que ser tirado em reunião com integrantes do Cade.
Os comentários de bastidores dão conta que a TV Record investiria pesado para comprar os direitos da TV aberta – já que as outras mídias têm licitações em separado. Os valores estariam acima até das possibilidades do mercado publicitário, mas a emissora paulistana tem suas outras fontes de receita de negócios do seu proprietário, Edir Macedo. A Globo não se arriscaria a tanto. A divisão dos clubes acabou sendo a solução.
O processo de divisão no Clube dos Treze já vem do ano passado, quando a CBF apoiou o ex-presidente do Flamengo Kleber Leite para a presidência da entidade, candidato derrotado pelo reeleito Fábio Koff, ex-presidente do Grêmio.
O teste da Record em Vancouver
Menos de um ano depois, vem a desestruturação da entidade que unia 20 clubes de maior torcida do país justo no ano em que a entidade faria tudo de forma legal, sob os olhos argutos do Cade. A derrota aparente da Globo, com sua desistência oficial, só deixou ainda mais em aberto a desconfiança de todos: a emissora carioca seria a grande responsável pelo esvaziamento da entidade. Inclusive, ela deixou claro que iria partir para as negociações individuais.
Os quatro clubes grandes do Rio de Janeiro e o Corinthians foram os primeiros a anunciar que negociariam por fora do Clube dos Treze. Depois, foram acompanhados por Coritiba, Santos, Cruzeiro, Grêmio e Palmeiras. O presidente do Corinthians, Andrés Sanchez – muito ligado à CBF – foi claro quanto à predileção pela Globo ao justificar a escolha pela trajetória da emissora com o futebol.
É verdade que ela tem melhor estrutura espalhada pelo país e um histórico nas últimas décadas de transmissão do futebol brasileiro. Mas em alguns momentos a audiência do futebol não caiu com a exclusividade de determinados torneios com outras emissoras, casos da Copa do Brasil com o SBT, no início da década de 1990, e do Mundial de Clubes em 2000, parceria entre a empresa de promoção esportiva Traffic e a Band.
Além do exemplo mais recente e surpreendente: a transmissão dos Jogos Olímpicos de Inverno do ano passado. Há anos com propriedade da Rede Globo, a mudança no proprietário dos direitos de transmissão olímpicos, com o teste da Record em Vancouver, com direito a equipe completa na cidade canadense, alavancou a audiência em determinados horários e gerou prêmio inédito a uma emissora brasileira entregue pelo Comitê Olímpico Internacional.
Torcedor é consumidor
A possibilidade do fim do monopólio sobre as decisões de transmissão continuariam nas mãos de uma emissora apenas, mas o processo seguiria os limites democráticos possibilitados pelo contraditório sistema capitalista. O desenho atual mostra que a influência da Rede Globo sobre o principal ‘ópio do povo’ – como definira a CBF recentemente o futebol num caso judicial –, é imenso. E o que deveria ser um exemplo de mudança, com a correção e observação de um órgão de regulação econômica, pode ser o fim da possibilidade de uma liga de clubes, a exemplo do que ocorreu com sucesso em alguns países europeus, aumentando, ao contrário do que dizem os presidentes de clubes, a dependência dos times nacionais das parceiras CBF-Globo.
O imbróglio sobre a transmissão do principal torneio de futebol do país traz à tona a situação selvagem da Indústria Cultural no Brasil, como afirma César Bolaño (2000, p. 75): ‘Não tenho conhecimento de nenhum caso no mundo desenvolvido onde se pratique, na Indústria Cultural, capitalismo tão selvagem. Nem sequer uma legislação anticoncentracionista como a norte-americana existe no Brasil e o pouco que acabou sendo incorporado ao nosso sistema legal (como a proibição da propriedade de duas emissoras numa mesma localidade ou de cinco no país) são sistematicamente burladas ou contornadas por artifícios legais. Nenhuma legislação contra a concentração multimídia, nenhum acesso do setor público às verbas publicitárias, nenhuma competitividade à televisão pública, nenhum freio ao monopólio da informação, nenhum limite objetivo ao poder das grandes empresas oligopolistas que dominam o setor de cultura.’
Quanto a nós, torcedores, só nos cabe observar esta malfadada tentativa de moralizar duas áreas de que tanto o brasileiro gosta e tanto está dependente da decisão de quem acumula o poder há muito: a televisão e o futebol. O torcedor é importante, sim, para eles, apenas enquanto um consumidor que aceitará comprar o produto independente da qualidade do pacote e do seu conteúdo.
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Jornalista, Maceió, AL