Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Manuel Pinto

‘Faz precisamente hoje 30 anos, o regime de mordaça que então vigorava em Portugal difundia pelos órgãos de Comunicação Social, através da assim designada Comissão de Exame Prévio da Imprensa, a seguinte circular: ‘Para os devidos efeitos, elucido V. Ex.ª de que todas as notícias de sessões públicas de qualquer índole devem, sem excepção, ser submetidas a exame prévio. A bem da Nação’. Nos dias que antecederam o início da Revolução de Abril, o ‘Jornal de Notícias’ e os restantes jornais foram particularmente fustigados pelos cortes e ameaças da Censura. Sirvo-me, como fonte, do precioso livro de César Príncipe, ‘Os Segredos da Censura’ (Ed. Caminho, 1979), que compilou exemplos e casos arquivados no JN entre 1967 e 1974, que dão a ideia da envergadura e alcance dos estragos dessa verdadeira máquina de silenciamento e manipulação que constituiu, ao longo de 48 anos, um dos pilares do regime ditatorial de Salazar e Caetano.

Precisamente no dia 18 de Abril, a Comissão de Censura enviava para o JN o seguinte telegrama:

‘Homenagem a Óscar Lopes – PROIBIDO. Confraternização de antigos alunos do Colégio Militar – PROIBIDAS indicações dos nomes dos oficiais que fizeram parte do curso X ou do curso Y. Isto para não referir os assuntos que os senhores têm de MANDAR SEMPRE CÁ, mas que às vezes se esquecem. (…) Julgamento da ARA (Acção Revolucionária Armada) – MANDAR para REDUZIR à expressão mais simples’. Julgamento das 'Três Marias' – TUDO CORTADO’.

No dia seguinte, a Censura impediu que os jornais dessem a notícia de que as ‘traineiras não foram para o mar’. Certamente que não foi por causa da meteorologia. Proibiu também que se referisse o facto de um conjunto de personalidades ter entregue na Presidência do Conselho de Ministros uma exposição sobre as últimas prisões efectuadas pela PIDE-DGS. Cortou igualmente qualquer referência a um telefonema anónimo que avisava da existência de uma bomba de uma instituição bancária.

No dia 24 de Abril, os bispos portugueses estavam reunidos em Fátima, na sua Assembleia Plenária. O regime temia que pudessem dizer algo de inconveniente. Por tal motivo, a Censura notificou os jornais de que não podiam publicar qualquer matéria sobre o assunto, sem antes a apresentar para apreciação. O mesmo relativamente ao bispo de Nampula, D. Manuel Vieira Pinto.

Os cortes atingiam, por vezes, as raias do inconcebível. Eis alguns exemplos de notícias que o JN foi obrigado a cortar: ‘Soldador queria pegar fogo à mulher e aos filhos’; ‘Em risco de fechar um hotel de Viana do Castelo por falta de gás propano’; ‘Exames de condução: suborno dos examinadores’; ‘Espancou a mulher e bateu nos polícias: cortar o bater nos polícias’; ‘Declaração do Dr. Marcelo Caetano aos jornalistas – cortar’.

O controlo dos conteúdos publicados passava frequentemente por sugestões e ordens com vista a mitigar ou tirar relevo ao texto. Deixo alguns exemplos. ‘Salazar. O título da 1ª página deve ser alterado. Em vez de continuar a ser grave o estado de saúde do Prof. Salazar, dizer que se mantém estacionário’; ‘Transferência de moradores do Bairro de Xangai. Não usar a expressão 'bairro de lata', por causa dos estrangeiros’; ‘Colóquio sobre educação sexual no Colégio do Coração de Maria, em Lisboa. Não falar em sexo, no título’; ‘Descarrilamento do 'Rápido' – cortar as hipóteses de sabotagem ou maldade; pode ficar o descuido’.

Os regimes que recorrem à Censura não são apenas regimes antidemocráticos. São, na verdade, regimes fracos. Porque têm medo da verdade e, em última análise, têm medo das pessoas, da sua capacidade de apreciar, ponderar, distinguir, tomar decisões, mudar. Na sua versão mais dura, são regimes autoritários, prepotentes, assentes na repressão, no segredo, na perseguição da diferença. Na versão mais suave, são paternalistas: entendem dever proteger o ‘rebanho’ face ao que predefiniram como prejudicial, ameaçador ou subversivo. A ideia da censura assenta na convicção de que as pessoas e a sociedade no seu todo são facilmente manipuláveis e que se torna, por conseguinte, necessário preservá-las do mero conhecimento da vida social, na sua diversidade. O recurso à censura é, assim, apanágio de regimes que temem o seu próprio povo. Seja como for, não é impunemente que gerações sucessivas passam uma vida inteira num regime destes. As sequelas mentais e culturais de tal enviesamento e distorção deixam marcas que ainda hoje nos afectam a todos (e não apenas àqueles que foram directamente vítimas). A nossa passividade, a nossa dificuldade de conviver com a diferença, de examinar os assuntos com rigor e de adoptar iniciativas assentes no conhecimento desse exame, enfim, a nossa dificuldade de assumir os nossos direitos e responsabilidades, nomeadamente face aos meios de comunicação social, alguma coisa terá a ver com o efeito devastador de uma máquina que amputou o olhar e a mente e que, ao fazê-lo, amputou a própria cidadania.

A censura não está ausente dos media, hoje. E é talvez mais sofisticada e difícil de combater. Mas é preciso ter a noção clara das realidades, nas vésperas da comemoração dos 30 anos do 25 de Abril: a abolição de um regime apoiado na repressão e na censura significou um salto vivificante para Portugal. Porque ninguém consegue manter a respiração em ambientes abafados ou sem ar.

Foram divulgados anteontem os dados de audiência dos jornais e revistas, relativos ao primeiro trimestre de 2004. Ligeira tendência para a quebra poderia ser a nota geral.

Ciclicamente vamos assistindo a estas informações, com cada título a procurar ‘puxar’ pela estatística que mais lhe convém, o que é, até certo ponto lógico.

Este tipo de resultados dão sempre um ‘braço’ por onde pegar. Mas é legítimo e necessário questionar esse modo de tratar a informação que diz respeito aos próprios media. Afinal, eles, que se entregam a um trabalho profissional de informação e análise sobre as outras instituições, não tratam com o mesmo profissionalismo a informação que lhes diz respeito.

Ora o público tem direito a saber mais do que se o seu jornal é o maior ou em que é que bate a concorrência.

O que é que as pessoas acham dos jornais e revistas que têm ao seu dispor? O que é que não têm e lhes faz falta? Que se passa com os mais jovens na sua relação com a imprensa? E, sobretudo, eu, se estivesse do lado dos que gerem, dirigem e trabalham nos jornais e revistas, preocupar-me-ia mais com aqueles – afinal, talvez a maioria – que não lêem nada, não podem ler ou não querem ler.’