No dia 2 de junho houve uma manifestação, um ato de repúdio à violência contra os jornalistas, em frente à Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, motivada pela tortura a que foi submetida uma equipe do jornal O Dia. No ato, foi também lembrada a morte do jornalista Tim Lopes, da Rede Globo.
É certo que atos de violência, absurdos como estes, devem ser motivo de repúdio, de manifestações, de cobranças às autoridades públicas e ao sistema judiciário brasileiro, que está muito longe de ser aquilo que deveria ser. Enfim, devem ser rechaçados pela nossa comunidade. Mas e quando o ato de violência é velado? Quando este ato se esconde atrás de uma falsa interpretação daquilo que deveria ser realmente liberdade de expressão? Será que isso não leva a uma falsa interpretação de censura à qual boa parte do jornalismo, ou dos jornalistas, se apega para justificar a manipulação de informação e até de mentiras que possam ser veiculadas? Será que a mídia é chamada de quarto poder à toa?
Pois bem, nesse mesmo dia também saiu uma reportagem no DF TV, noticiário local da Rede Globo de Brasília, sobre a escola pública na qual leciono, o CEAN, que, a meu ver, explicita o que estou tentando dizer. Tomo por base a matéria escrita que aparece no site deste jornal, bem como os comentários de alguns membros da comunidade sobre a matéria televisionada, pois não tive como assisti-la. A matéria, na íntegra, encontra-se aqui.
Primeiro bimestre e final de ano
A reportagem, assinada pelas jornalistas Flávia Alvarenga e Marcione Santana, começa com a seguinte menção:
‘Auditoria no CEAN. Hoje, a Secretaria de Educação começou uma investigação no colégio, que ainda não entregou o projeto pedagógico de 2008. O rendimento dos alunos é considerado péssimo.’
Já na chamada à reportagem percebemos uma clara, óbvia e abominável tentativa de induzir a opinião pública a pensar que a escola é realmente péssima.
No início da reportagem, mencionou-se que a Secretaria de Educação e a Promotoria de Defesa da Educação começaram a auditoria, dando a entender que a Promotoria participaria da comissão responsável pela auditoria, o que não é verdade. A promotora de Defesa da Educação Ana Luiza Rivera, que concedeu entrevista dentro da escola – a qual pude presenciar – disse, ao final da reportagem: ‘Nós vamos verificar, pelo MP, como está a escola, quais os problemas e se os alunos estão tendo aula. A questão da auditoria cabe à Secretaria de Educação’ – ou seja, não era da competência do Ministério Público fazer auditoria, e sim, garantir o direito de educação a crianças e adolescentes. É de se pasmar a contradição mostrada entre o início e o final da reportagem. No mínimo é uma falta de cuidado com o que é escrito.
‘Cinqüenta e quatro por cento de todos os alunos de Química da escola, nesse primeiro semestre, estão com média abaixo de cinco. Isso é muito preocupante’.
Realmente é preocupante a falta de cuidado nas declarações da subsecretária de Educação Eunice Santos. O primeiro semestre nem terminou, ainda estamos no meio do segundo bimestre, então como saber destes números? Caso não se saiba, as notas são bimestrais e os dados são disponibilizados à Secretaria de Educação após digitação pela secretaria da escola e lançamento no sistema de registros da SEEDF. Por outro lado, se a subsecretária queria se referir ao primeiro bimestre, pergunto como é possível avaliar um processo educacional que é anual já no primeiro bimestre, que é geralmente de adaptação do aluno? Basta a própria Secretaria, ou a Promotoria de Defesa de Educação, observarem os dados de outras escolas, inclusive particulares, que verão que a situação no primeiro bimestre não reflete a situação no final do ano.
Análise qualitativa e comparativa
Vamos a outra citação:
‘Outro ponto que levou à Auditoria foram os 11 professores excedentes, exclusivos para laboratórios.’
A reportagem diz que os professores são excedentes. Vejamos. Segundo o Moderno Dicionário da Língua Portuguesa online, excedente significa o que excede ou sobeja; diferença para mais; excesso, sobra. Não consideramos nenhuma sobra o fato de termos professores que atuam nos laboratórios quando estamos tratando de educação de qualidade. Essa é a que queremos oferecer à nossa comunidade.
No entanto, considero excesso (Moderno Dicionário da Língua Portuguesa online: 3 Dir Crueldades, violências), e creio que muitos da comunidade também, o que a Secretaria quer impor a toda rede de ensino público do Distrito Federal bem no meio de um bimestre em andamento, tal como esta auditoria estabelecida no CEAN. Também gostaria de deixar bem claro que entendo o fato de que outras escolas não devam ficar sem professores e que elas devem batalhar para que a Secretaria os disponibilize. Entretanto, não às custas de tornar o projeto de outras escolas inviáveis. Que sejam chamados professores concursados, ou que se faça concurso público para a contratação de mais profissionais. Ou, se querem fazer economia, contenção de verbas, que se faça inspeção nas Regionais de Ensino a fim de buscar profissionais que estão exercendo outras funções que não aquelas para as quais prestaram concurso.
‘Os diretores terão que explicar o péssimo rendimento dos alunos, justamente nas disciplinas onde havia professores extras… Nós vamos verificar os registros feitos, a lógica de funcionamento da escola e vamos procurar ouvir as justificativas que a escola vai nos dar para essa confusão toda. Diz-se que a escola tem uma qualidade que os números não estão representando’, ressalta o secretário de Educação José Luiz Valente. Bom, sem levar em conta que temos apenas uma diretora, fica difícil, como já mencionado, que ela explique o rendimento dos alunos já no primeiro bimestre.
Estamos tratando da educação de adolescentes e não se pode avaliar isto como se avalia uma empresa, somente através de números. Por que o secretário não faz uma verdadeira análise qualitativa e comparativa com outras escolas que não têm laboratórios para ver o nível de aprendizado dos alunos e se a prática em laboratório não influencia nesta aprendizagem, para que sejam tiradas reais conclusões?
Convênios sem licitações
E o que considero mais ultrajante na reportagem da jornalista Flávia Alvarenga é o fato de ela mencionar simplesmente que a diretora não estava na escola e que o vice-diretor não quis dar declarações à imprensa. Isso foi muita falta de ética por omitir informações, pois a jornalista sabia que a diretora se encontrava e ainda se encontra hospitalizada. Já o vice-diretor não pôde atendê-la por dois motivos: primeiro porque a mesma não havia marcado entrevista ou reportagem com membros da escola, e sim com as pessoas que vieram auditar a escola; e segundo porque no momento em que a jornalista estava entrevistando a promotora acontecia uma reunião entre Direção, Promotoria e Secretaria de Educação. Inclusive esta reunião é citada na reportagem como sendo a portas fechadas.
Absurdo esta manipulação da informação, o desrespeito com o leitor e principalmente com pessoas idôneas e dignas como os componentes da direção do CEAN, pois quando fui indagar à equipe de reportagem se eles não iriam querer saber a versão da escola, a jornalista Flávia disse-me que o vice-diretor se havia recusado a dar entrevista. Então, fui à sala onde a reunião acontecia e falei com a supervisora pedagógica, que disse que eles realmente não poderiam sair naquele momento.
Voltei para falar com a equipe e a jornalista disse que não dava para esperar porque já havia marcado com o secretário de Educação e a reportagem sairia na 1ª edição do DF TV. Disse também que tinha material da manifestação da comunidade e que isso seria editado na reportagem. Pegou o telefone da escola dizendo que telefonaria, se possível, para falar com alguém da direção. Em nenhum momento quiseram me entrevistar.
Todos nós sabemos o impacto na opinião pública quando se diz que o MP está investigando alguém ou algum outro órgão. É absurda a forma como as coisas estão sendo veiculadas neste caso. É extremamente maluco o fato de pessoas que apenas querem exercer o seu direito a um trabalho honesto, digno e no qual acreditam profundamente, serem alvo de ataques e auditorias como esta, enquanto órgãos como o próprio governo do Distrito Federal, que estabelece convênios com a Fundação Roberto Marinho, Instituto Sangari e Microsoft por debaixo dos panos, sem realização de licitações e sem haver qualquer documento público a ser disponibilizado, nem mesmo internamente para as escolas, sobre estes convênios, não serem os verdadeiros órgãos a sofrer auditoria.
Estímulo a formas de violência
Sem falarmos aqui de pessoas que ocupam cargos eletivos para proveito próprio e que, na maioria das vezes, o corporativismo ou, o pior, a cumplicidade, evita que os mesmos sejam investigados ou presos. Ah, me desculpem! Talvez muitos dos que lêem este texto não saibam que pode não ser interesse da Rede Globo que a Fundação Roberto Marinho perca milhões com o tal convênio firmado com o Governo do Distrito Federal e, mais ainda, deixe de contribuir para a formação de cidadãos não pensantes, sem nenhuma crítica, que continuem a se interessar pela mediocridade e estímulo à violência muitas vezes veiculados em sua programação.
Sinto-me comparado aos verdadeiros marginais e, desta forma, ultrajado, desmoralizado, caluniado pelos vários meios de comunicação que, sem qualquer escrúpulo, editam reportagens sensacionalistas. Sem falar de jornalistas que nunca tiveram o verdadeiro ideal jornalístico de expressar realmente a verdade, ou o perderam porque se venderam aos patrões. Jornalistas, principalmente os da Rede Globo, que, me parece, aprendem a fazer perguntas imbecis do tipo: ‘o que você está sentindo agora?’, quando algum desportista ganha uma medalha de ouro, ou quando alguém perde um ente querido de forma violenta.
Pergunto-me como acabar com a violência se os meios de comunicação, principalmente televisivos, a banalizam todos os dias? Vê-se o repórter com gestos e feições de reprovação em relação aos atos e formas de violência que ele veicula. No entanto, ele os retrata factualmente e pronto. Não há inspiração de cidadania na maioria dos veículos da informação e não se instiga no cidadão que realmente busque seus direitos.
Boa parte dos jornalistas, em sua grande maioria dos meios televisivos, não se imbui do papel de cidadão crítico na formação de uma sociedade menos apática e mais lutadora, que exija realmente maior efetividade da justiça, dos órgãos públicos e dos governos – estes últimos, na promoção do real projeto de sociedade que é o de uma educação digna de excelência, projeto este a longo prazo. Eles dizem que cabe ao jornalismo ser imparcial, mostrar apenas os fatos. Entretanto, quando a crítica diz respeito a eles ou à empresa a qual pertencem, isso deixa de ser uma tônica. A forma como os fatos são editados e transmitidos também deve ser levada em conta. Se alguns jornalistas são analíticos, por que todos não podem ser?
Será que, por tudo isso, o estilo de boa parte do jornalismo feito hoje em dia também não proporciona ou estimula formas de violência como aquelas que eles dizem combater, como esta contra uma escola pública?
Estamos lutando apenas por um projeto que acreditamos ser o de uma educação de qualidade e de formação de indivíduos que promovam uma sociedade mais justa e melhor.
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Professor de Física do Centro de Ensino Médio Asa Norte (CEAN), Brasília, DF